Ela gritava na minha mente, o tempo todo, não me dava mais sossego. Eu
não fazia mais nada a não ser tentar jogá-la no papel. Já tinha começado a
surtar com aquelas cenas gritadas por ela na minha cabeça: um velho triste, uma
jovem morta, uma mulher rica, um homem doente, um carro vermelho, uma moça
ferida.
Minha cabeça doía.
What the hell?, eu
pensava.
Olhei pra cima, pra um ponto qualquer no teto, e gritei bem alto:
–Cala a boca, porra! Assim você me atrapalha! Não vê que gritando assim
eu não consigo escrever?
O rapaz lá de fora tinha parado de tocar, talvez assustado com o meu
grito. Pensei em afundar a cabeça nas mãos e começar a chorar, dando por
perdida a minha já pouca sanidade.
E comecei a rir.
O rapaz voltou a tocar You make me weep and wanna die just when..., o
mesmo Journey de todos os dias. E então novamente parou.
Naquele momento tudo pareceu começar a imitar algo já acontecido. Uncanny
strange dejá-vu. Senti um frio na espinha, na hora eu não soube o motivo. Meu
coração disparou. Quase cheguei à janela pra olhar o que acontecia, gritar pro
rapaz Por que parou?, parou por quê? Mas tive medo, como se algo pudesse
quebrar.
E pela minha janela entrou a outra voz:
–Porra, cara, por que sempre a mesma música?, disse a jovem. Todo dia! Já
deu...
–Só sei tocar essa...
–Te ensino outras, quer?
–Quero.
(Pausa longa. Ele era bem calmo e lento, o rapaz.)
–Você acha que eu toco bem?
–Acho que aprende rápido.
Aquela mulher tinha se calado dentro de mim. Talvez assustada pelo meu
grito. Ou intimidada pela voz tão bonita da jovem que tinha parado pra
conversar com o rapaz lá fora.
Tive uma sensação crescente de já saber o próximo passo do destino. Alguma
inspiração enlouquecida me tomou (a mão daquela mulher segurou a minha mão,
estendida no abismo de onde eu tentava puxá-la, e começou a rabiscar comigo, a
noite toda, a história que ela queria me contar: um velho triste, uma jovem
morta etc., etc.).
Às oito da manhã, deitei pra dormir.
Mas não dormi.
Lá fora, ele tocava.
E não me surpreendi ao ouvi-lo ensaiando no violão alguma música, talvez Napalm
Death, em vez da mesma música de sempre. Journey. Não me surpreendi, porque era
como se eu já soubesse.
Como se tivesse sido escrito assim.
Balancei a cabeça, pra afastar o dejá-vu, a dor na coluna pela noite de
escrita, a loucura ou o sono, não sei.
E só então dormi.
Não troquei de roupa ao acordar, duas da tarde. Não comi, não tomei
banho, não pensei, não senti. Eu só queria continuar aquela história, mais
nada. Eu só queria escrever. Depois de cinco anos, aquela esperança voltando,
voltando. (Dessa vez sim, vai dar certo. Eu não vou parar antes do fim. Nem
deixar que ela se esconda. Ela, aquela, a minha, mulher.)
Então saí.
Levei comigo um caderno e uma caneta. Eu não tinha o hábito de
manuscrever, porque a minha letra era horrível e eu sempre acabava pensando mais
rápido do que escrevia. Depois eu não entendia nada. Eu preferia o computador. Ou
a Olivetti verde-claro do Gustavo, nos dias em que eu cansava de ficar trancado
no quarto.
Eu estava cansado de ficar trancado no quarto.
Mas naquela tarde, ao sair de casa – e não ouvir o violão do rapaz lá fora
–, levei comigo um caderno e uma caneta. Fui andando até chegar ao cais, onde
muitos homens do mar ofereciam passeios de escuna e barcos particulares,
cinquenta reais a hora, sessenta, vinte e cinco com almoço por pessoa, pra
turistas que passavam. Não me ofereciam, apesar de eu parecer um turista, porque
todos já me conheciam por ali – o escritor, branco demais, sempre de preto.
Eu gostava de seguir até o fim do píer, sentar na madeira molhada e tirar
os sapatos pra molhar os pés na água salgada. Então, acendia um cigarro, e
ficava olhando o horizonte, caçando alguma coisa por dentro que me fizesse
escrever. Ficar ali sentado era uma das poucas coisas que me tiravam de casa. Eu
não gostava de sair, já tinha perdido a paciência pras pessoas. Eu diria “fé”
nas pessoas, se eu acreditasse nisso. Mas não.
Cruzei com quatro jovens no cais de madeira. Não prestei atenção neles. Só
nela, que me gritava por dentro. Era ela que eu tinha que caçar por dentro
dessa vez.
Ela queria nascer. Eu escrevia pra não morrer.
Eu já não sabia mais quem precisava de quem.
Quem de nós dois, eu cantarolei enquanto andava.
Sentei na madeira molhada e fiquei olhando o horizonte então. Muita gente
atrás andando, dia de sol concorrido. O tablado sacudia com os passos dos
turistas. Me lembrei mais uma vez daquele senhor na cachaçaria, alguns dias
atrás, e me esforcei, me esforcei, me esforcei. Mas eu não lembrava.
Alguma coisa começou a revirar, angustiada, dentro de mim. Acendi um
cigarro, mas fumar não adiantava. Devia ser desespero, pensei, porque as coisas
pareciam mais difíceis agora, que eu sabia dela, e nada mais estava em paz. Eu estava
bebendo mais e eu sempre tinha bebido muito. Eu estava fumando demais e eu
sempre tinha fumado muito. Achei que, se até lembrar um rosto era difícil
agora, a culpa era dela, que não dizia a que tinha vindo me assombrar. A
passeio talvez, pra mexer com as minhas velhas esperanças frustradas. De
escrever novamente. De tê-la, quem sabe? De tornar a vida real.
Achei, naquele momento, que eu estava doido, completamente maluco, surtado,
pirado, stone cold crazy. Jaime, Jaime, eu me aconselhei, ela é a-pe-nas
i-lu-são. Acho que cheguei a desistir dela, que me forcei a esquecê-la, que pensei
em me internar, que torci pra que ela se escondesse de novo entre os figurantes
daquela nova história que estava me saindo. Acho que quis me fixar na imagem do
dono da loja de bebidas do centro histórico, que me forcei a lembrar de onde
conhecia aquele rosto mais do que jamais tinha tentado lembrar um rosto na
minha vida.
Mas nada disso adiantava. Ela não ia embora. Dele, eu não me lembrava. E
eu distraidamente escrevia no caderno: “Qual é o seu nome? Me diz o seu
nome...” E riscava aleatoriamente as bordas. Pra meu enorme desespero, eu a
queria, eu queria insistir na loucura de criá-la a imagem daquela que eu sempre
tinha procurado sem encontrar. E isso só podia ser loucura.
Eu só podia estar maluco.
Isso foi uma conclusão, mesmo que eu não quisesse. Porque, de um barco ao
longe, vinha uma música quase dissipada pela distância, trazida no vento que cheirava
a maresia. E isso sugou por completo a minha atenção. Pensei que quem estava
naquele barco devia ser surdo, porque, se da costa eu conseguia ouvir a música
estando o barco já tão longe, o volume lá dentro devia ser insuportável.
Era uma pequena lancha particular aquele barco. Branca, com frisos azuis
nas laterais. O nome eu não conseguia ler, mas tinha algum numeral romano
depois, como se fosse a segunda ou terceira da frota. Ou seria da dinastia?
Quase num susto, daqueles que se tem quando alguma coisa parece não fazer
sentido e de repente se torna inteiramente compreensível, reconheci Rock you
like a hurricane. Uma mulher se levantou no fundo do barco e caminhou pra
frente. Seria popa? Ou proa? Parecia jovem, magra, de biquíni, com um violão,
talvez fosse um violão, debaixo do braço.
Comecei a cantar junto
More days to come
New places to go
I've got to leave
It's time for a show
New places to go
I've got to leave
It's time for a show
Foi então que, não sei como, aconteceu. A lancha fez um movimento brusco
e aquela mulher, acho que jovem, que estava na beira da popa, ou seria proa?, caiu
com o violão no mar. Os outros, três pessoas que pareciam jovens também,
largaram tudo dentro da lancha, correram pra beirada e estenderam as mãos. Mas
ela voltou à tona sozinha. Como se não precisasse de salvação, nem de ninguém.
Não sei como. Aconteceu.
E eu lembrei.
Muito nítido, vi novamente o rosto de um homem. Ele me ofereceu
pagamento, café, cachaça, licor. Qualquer coisa era pouco como recompensa. Ao
lado dele, uma mulher rezava com uma menina no colo. A menina que eu tirei do
mar.
Eu lembrei. O senhor que eu tinha encontrado dias atrás na loja de
bebidas era o pai da menina que eu tirei do mar.
Trinta anos mais velho.
Sim, sim. Eu tinha ficado maluco!
Levantei correndo do píer de madeira molhada, não lembrei de calçar os
sapatos nem vi quando o caderno caiu. Corri pro centro histórico, tropeçando
nas pedras, desviando de fotos e de charretes, abrindo caminho entre turistas
de todos os lugares, que falavam todas as línguas. Quando cheguei à cachaçaria,
exausto, descalço, e entrei, olhei primeiro atrás do balcão, ali onde achei aquele
senhor, dias atrás, arrumando garrafas de bebida na grande adega, mas não havia
ninguém. Olhei a loja inteira, nenhum sinal do dono. Só o mesmo cheiro de roupa
guardada e a luz sépia e amarela pairando no ambiente, como uma foto velha.
Perguntei pelo homem que eu procurava ao rapaz atendente, que tinha me
vendido o maço de mentolados naquele dia, mas ele não soube responder, ou não
quis. Deve ter me achado estranho, mal intencionado, não sei. Mas tudo isso só
estou pensando agora. Naquele momento, só pedi mais um maço, peguei mais uma
garrafa, paguei e saí.
O sol forte me cegou um instante. O cheiro de maresia me queimou as
narinas. Perdi o fôlego. Tonteei.
Por três dias inteiros, fumei muito, bebi muito, e concluí que estava
doido. Completamente louco. Surtado, maluco, stone cold crazy. Nada mais fazia
sentido. Aquele homem que eu tinha visto não tinha uma semana, com trinta anos,
se muito, me agradecendo por achar que eu salvei sua filha, não podia, não po-di-a,
ter se transformado por encanto em um senhor grisalho de mais de sessenta anos.
Era loucura. Lou-cu-ra.
Era tudo culpa dela, pensei, e me julguei infantil pensando assim, uma
criança tentando explicar à mãe que o irmãozinho era o culpado da briga.
Mas, eu tentava explicar a mim mesmo, era mesmo tudo culpa dela. Nada
mais estava em paz. Quase cheguei a odiá-la, mas não pude, porque eu a amava. Eu
concluí que estava doido e que a amava. E devia estar doido porque a amava. Ou enigma
Tostines.
Por três dias, bebi todas as garrafas da casa, fumei todos os cigarros da
casa, quase não comi e achei que estava doido. Completamente louco. Surtado,
maluco, stone cold crazy.
Nove círculos do inferno, depois os do purgatório, e só então o céu. Foi
assim que, depois de três dias, ela veio escalando o abismo pra segurar de novo
a minha mão estendida. E me deixou lhe dar o nome de.
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