Quatro trechos de ‘Admirável Mundo Novo’, de Aldous Huxley. A novela,
publicada originalmente em 1932, denuncia os aspectos desumanizadores do
“progresso” científico e material. (E ainda não aprendemos, não é?)
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‘Uma nova teoria biológica’ era o título do trabalho que Mustafá Mond
acabava de ler. Ficou sentado por algum tempo, as sobrancelhas franzidas
meditativamente; depois tomou a pena e escreveu sobre a página de rosto: “A
maneira pela qual o autor trata matematicamente a concepção de finalidade é
nova e extremamente engenhosa, mas herética e, no que diz respeito à ordem
social presente, perigosa e potencialmente subversiva. ‘Não publicar’.”
Sublinhou essas palavras. “O autor será mantido sob vigilância especial. Sua
transferência para o Posto de Vigilância Marinha de Santa Helena poderá
tornar-se necessária.” Uma lástima, pensou, enquanto assinava. Era um trabalho
magistral. Mas se se começasse a admitir explicações de ordem finalística...
bem, não se sabia qual poderia ser o resultado. Era o tipo de ideia que poderia
facilmente descondicionar os espíritos menos estáveis das castas superiores –
que poderia fazê-lo perder a fé na felicidade como Soberano Bem e levá-los a
crer, ao invés disso, que o objetivo estava em alguma parte além e fora da
esfera humana presente; que a finalidade da vida não era a manutenção do bem
estar, e sim uma certa intensificação, um certo refinamento da consciência, uma
ampliação do saber... O que, refletiu o Administrador, bem podia ser verdade.
Mas inadmissível nas circunstâncias presentes. Retornou a pena e, sob as
palavras ‘Não publicar’, riscou um segundo traço, mais espesso, mais grosso que
o primeiro; depois suspirou. “Como seria divertido”, pensou, “se não tivesse de
pensar na felicidade!”
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Uma das principais funções de um amigo é suportar (sob forma atenuada e
simbólica) os castigos que nós gostaríamos, mas não temos possibilidade, de
infligir aos nossos inimigos.
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– Por que não lhes faz ver ‘Otelo’?
– Já lhe disse: é antigo. Além disso, não o compreenderiam.
Sim, era verdade. Ele lembrou-se como Helmoltz rira de ‘Romeu e
Julieta’.
– Pois, então – disse, após um silêncio –, algo novo que seja como
‘Otelo’ e que eles possam compreender.
– É o que todos nós temos desejado escrever – declarou Helmholtz,
rompendo seu prolongado silêncio.
– E o que o senhor nunca há de escrever – respondeu o Administrador. –
Porque, se se parecesse realmente com ‘Otelo’, ninguém poderia compreendê-lo,
por mais novo que fosse. E, se fosse novo, não poderia de maneira alguma ser
parecido com ‘Otelo’.
– Por que não?
– Sim, por que não? – repetiu Helmholtz. Ele também esquecera as
realidades desagradáveis da situação. Verde de ansiedade e temor. Bernard era o
único que se lembrava; os outros não lhe deram atenção. – Por que não?
– Porque o nosso mundo não é o mesmo mundo de ‘Otelo’. Não se pode fazer
um calhambeque sem aço, e não se pode fazer uma tragédia sem instabilidade
social. O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e
nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca
adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da
velhice; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem
filhos, nem amantes, por quem possam sofrer emoções violentas; são
condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como
devem. E, se por acaso, alguma coisa andar mal, tem o ‘soma’. Que o senhor
atira pela janela em nome da liberdade, Sr. Selvagem. Da liberdade! – Riu. –
Espera que os Deltas saibam o que é a liberdade! E agora quer que eles
compreendam ‘Otelo’! Meu caro jovem!
O Selvagem calou-se um momento.
– Apesar de tudo – insistiu obstinadamente –, ‘Otelo’ é bom. ‘Otelo’ é
melhor do que estes filmes sensíveis.
– Sem dúvida – aquiesceu o Administrador – mas esse é o preço que temos
de pagar pela estabilidade. É preciso escolher entre a felicidade e aquilo que
antigamente se chamava a grande arte. Nós sacrificamos a grande arte. Temos, em
seu lugar, os filmes sensíveis e o órgão de perfumes.
– Mas eles não significam nada.
– Significam o que são; representam para os expectadores uma porção de
sensações agradáveis.
– É que eles são... são narrados por um idiota.
O Administrador pôs-se a rir.
– O senhor não está sendo muito cortês com seu amigo, o Sr. Watson. Um
dos nossos mais notáveis engenheiros em Emoção...
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– Mas como são úteis! Estou vendo que o senhor não gosta dos nossos
Grupos Bokanovsky; mas, asseguro-lhe, eles são o alicerce sobre o qual está
edificado tudo o mais. São o giroscópio que estabiliza o avião-foguete do
Estado na sua rota imutável. – A voz profunda vibrava, emocionante; a mão,
gesticulando, representava todo o espaço e o impulso da máquina irresistível. A
oratória de Mustafá Mond achava-se quase à altura dos modelos sintéticos.
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