João Caetano do Nascimento é poeta,
jornalista de formação e atuação profissional, trabalha há muitos anos na
imprensa sindical. Após anos de criação literária, em abril, ele lançou seu
primeiro romance: O rio de todas as nossas dores, sobre o qual conversamos.
João, para aqueles que acompanham
sua criação artística por meio de sua atuação desde a década de 70 no MPA ou
atualmente por meio de seu perfil no facebook, fica uma questão: Por que um
poeta tem como livro de estreia um romance?
Na
verdade, eu não me considero poeta. Cometo alguns poemas, digamos assim. Poucos
sabem, mas sempre me dediquei mais à prosa, mais especificamente, o romance é o
terreno em que trilho com mais familiaridade. Este é o meu terceiro romance. Um
anterior chegou a ficar entre os finalistas do Prêmio SESC de Literatura Náufrago Noturno, mas como eu
considerava uma experiência de linguagem, resolvi não torna-lo público.
No início do primeiro capítulo de O Rio de todas as nossas dores parece
haver sobre as mãos do romancista, a mão do jornalista, há uma espécie de lide.
Em que medida o jornalista colaborou com a criação desta obra?
Realmente,
minha ideia era dar um início quase jornalístico e, à medida que fosse
avançando a narrativa desse capítulo, eu mudaria o foco para a primeira pessoa,
que é o que eu fiz, como para lembrar que a narrativa sempre traz consigo um
olhar particular e uma interpretação própria dos fatos. Ela não é isenta. Todos
nós temos lados, visões de mundo, presentes na forma com que vemos e relatamos
as coisas.
Após o lide parece haver um diálogo
com a pintura, logo na primeira página, já o final e alguns outros momentos da
narrativa propõem um diálogo com o cinema. Como outras linguagens te inspiraram
ao longo da escrita do romance?
A
ideia inicial do romance nasceu de uma observação sobre pinturas da idade
média. Notei que ao nos aproximarmos do período do renascimento, ia ocorrendo
uma lenta mudança temática e vi alguns quadros com uma espécie de santificação
das pessoas comuns, retratadas com detalhes ao fundo que lembravam auréolas.
Daí, surgiu na minha mente uma imagem muito forte: uma mulher do povo, simples,
rosto marcado pelo sofrimento, com um olhar que trazia uma história de revoltas
reprimidas e de um passado contraditório. Por trás desse rosto, eu vi um sol
amarelo, redondo, uma auréola. Assim nasceu minha primeira personagem do
romance, Celestina. Outros fatos
surgiram de lembranças e imagens reais ou imaginárias que eu trago comigo.
Talvez por isso, essa aproximação que tantos falam com a linguagem
cinematográfica, pois o romance surgiu a partir de imagens. Há ainda uma
personagem, cujo texto, foi todo calcado em cima de tangos e boleros. Queria
criar um clima de mau gosto, de lugar comum, de estranhamento, onde verdades e mentiras
misturam-se. Não achava um tom que me agradasse, mas me vinha à memória um
verso antigo de um bolerão. A partir daí, construí toda a apresentação da personagem
através da colagem de boleros e tangos. Gostei desse efeito que trabalhei
exaustivamente no texto para que não destoasse e não chamasse demais a atenção
do leitor.
Há pouco tempo, em entrevista para
o programa Trilhas de letras, o editor Carlos Andreazza disse que a literatura
contemporânea não tem se ocupado em criar grandes personagens. Acredito que o
seu Luís/Vicente é uma exceção no atual cenário literário. Como foi o processo
de criação deste personagem? Antecede a obra ou ele foi construído ao longo da
feitura?
Tive
a preocupação de, além de tudo contar uma boa história, com personagens vivos. Foi
um processo rigorosamente construído, a partir da história de uma vingança, mas
cada detalhe e cada personagem construído com rigor. Fiz para meu uso, fichas
com toda a vida deles, mesmo com o que não narrativa. Nas primeiras linhas do
capítulo Primeiro Dia, eu brinco com
o leitor sobre isso. Tudo vai surgindo na neblina, um rosto que vai se
revelando, um local que vai aparecendo aos poucos, mostrando como é o próprio
processo de criação. E deixo escrito claramente que há coisas que não vou
revelar. Todo o romance é também uma reflexão sobre o ato de escrever, sobre
ficção e realidade e sobre o processo de criação. Pelo menos, tentei fazer
isso.
João, O rio de todas as nossas dores toca em questões presentes no atual
momento político de nosso país (Atuação de sindicatos, a busca para esclarecer
alguns crimes ocorridos na ditadura, enriquecimento de pessoas que colaboraram
com o regime). O presente interferiu na concepção do romance?
Aí
vale a lição de meu mestre, o escritor que leio e releio constantemente, Osman
Lins: “. Busco as respostas dentro da
noite e é como se estivesse nos intestinos de um cão. A sufocação e a sujeira,
por mais que procure defender-me, fazem parte de mim – de nós. Pode o espírito
a tudo sobrepor-se? Posso manter-me limpo, não infeccionado, dentro das tripas
do cão? Ouço: ‘A indiferença reflete um acordo, tácito e dúbio, com os
excrementos’. Não, não serei indiferente”. Eu tentei ampliar com a
narrativa o entendimento das coisas, levantar o pano que encobre o real, mas
tendo o compromisso também de refletir sobre o meu tempo, sobre as pessoas e os
acontecimentos presentes e tomar posição sobre isso. Tenho lado na vida,
convicções que estão claras também no romance.
Um fato ocorrido na infância do
protagonista, o acompanha ao longo dos 28 anos de hiato temporal aberto na
obra. O homem passa a vida ruminando o que sentiu ainda criança?
Um
fato que leva o protagonista a uma viagem para entender o que aconteceu com ele
e fazer justiça. Ele se propõe a ser a consciência, o que procura levar o
acerto, limpar as impurezas, embora tenha claro que sua ação poderá criar novos
erros. Ele deixa pistas sobre o significado das coisas. Não vou avançar nesse
campo, mas Vicente deixa sinais pelo caminho nos símbolos e letras. Eles não
foram colocados ali à toa, procuram dar um significado mais amplo à obra.
Aliás, tentei não deixar nada entregue às mãos do acaso. Foram dois anos de
escrita praticamente diária. Em cada nome, data, número e imagens eu procurei dar
um sentido, reforçar uma visão de mundo e tornar possível algumas leituras,
além da história propriamente da vingança.
No prefácio, Daniel G. Lopes chama
a atenção para a importância do espaço (Vila da alegria) na obra, se assemelhando
ao Cortiço, de Aluísio de Azevedo,
influenciando na interioridade das personagens da vila. No início é dito que a
Vila fica localizada em São Miguel Paulista. Quais foram as fontes para criar o
cenário-personagem da sua obra?
A
Vila da Alegria eu situei em São Miguel Paulista, mas poderia ser um local em
qualquer outra grande cidade com bolsão de pobreza. Ajuntei na construção dessa
vila um pouco de muitos lugares reais e imaginários, Eu, como o próprio
personagem, também tinha um mapa detalhado de todas as ruas e vielas dessa Vila
da Alegria. Daniel Lopes chama atenção para isso, a Vila é praticamente uma
personagem a mais na narrativa. Ela e o rio que Vicente irá encontrar no final
têm caráter simbólico.
A presença de Alice, uma moça
nascida num ambiente burguês, que por conta das reviravoltas do destino, acaba
na vila, onde organiza uma associação de moradores, é constatação que o
proletariado não consegue se organizar por sozinho?
Na
verdade, no final da década de 1970, a zona leste recebeu muita gente, de
outras regiões, com formação universitária. Gente que veio para se engajar nos nascentes
movimentos sociais. Isso foi um fato comum, que eu usei como referência para
Alice, numa circunstância diferenciada. O conflito de Alice é, eu diria, existencial. No
local, onde ela passa a morar, já havia a organização sindical. Ela ajudou,
sim, na organização dos moradores, mas não tenta substitui-los em momento
algum. Entretanto, sobre isso, valeria uma longa discussão política sobre o espontaneismo ou não dos movimentos, debate
que não cabe aqui. Alice é, e se coloca, como um elemento de fora, alguém que
está em busca de seu lugar na existência, que não é dali, que é de classe
social diferente, mas que acaba se identificando e encontrando uma razão de
viver no meio daquela gente. Ela descobre uma face dura do mundo que tantos tentam ignorar. Com certa ironia, Alice se refere em dado
momento à vila como o seu país das
maravilhas. Ela é uma parceira na luta. Nada mais. Destaco ainda que tanto Alice
quanto Vicente, na verdade, são párias, elementos deslocados e à margem dos
dois mundos, mas que acreditam encontrar certo pertencimento com aquela gente.
A raiz de Vicente está ali, embora tenha ficado distante muito tempo do local.
O lançamento do romance de maneira
independente foi uma opção ou falta de encontrar no cenário editorial uma
proposta que lhe agradasse minimamente?
Fugi
muito da publicação, durante minha já longa vida. Quando decidi trazer este
romance à luz, tive algumas conversas, senti um sinal verde alguns editores.
Como trabalho como jornalista há alguns anos, tenho noção de diagramação, de
edição, etc. Conversando com Daniel Lopes, ele me sugeriu: já que você tem os
meios, publique independente. Era o conselho que eu aguardava. Amigos e pessoas
da minha família ajudaram. Alguns, através da leitura dos originais, com
sugestões e apontando eventuais incoerências, outros com a diagramação, consultas de gráficas, etc.
O artista plástico Rodrigo Martins presenteou-me com uma belíssima ilustração que
foi a capa do livro. Resolvi a parte burocrática e estamos aí, com O rio de todas as nossas dores.
https://www.facebook.com/joaocaetano.donascimento.1
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