[Diogo passava os seus dias cuidando de imenso jardim na grande mansão.
Em troca daquele seu trabalho simples, natural, daquele seu cuidado às frágeis
criaturas do reino vegetal, é que ele garantia sustento](1). A
contrapartida de suas mãos calejadas: o quarto singelo para repousar o seu ser
à noite, ante a gravidade da terra e o etéreo das estrelas flutuantes, acima de
sua cabeça; um bom prato de comida que Luiza preparava; e água a vontade, para
beber, lavar o corpo e dar de beber a sua verde companhia.
(1) Esta primeira frase se refere ao consciente
de Diogo.
Daquela sua
simplicidade singular irradiava o sorriso ingênuo, e um brilho por vezes
inconcebível, que habita apenas os retardados e os mentecaptos. Diogo não
entendia das coisas do homem, cada cuidadoso golpe de sua enxada separava,
paulatinamente, as ervas daninhas das mais variadas espécies de plantas, e
resultava em gotas de suor que lhe corriam a face. O mesmo sol que
possibilitava a fotossíntese castigava a sua cara.
Os elegantes
moradores da mansão avançavam orgulhosos com os seus visitantes através de
caminhos cuidadosamente traçados, entre magníficas folhagens, as belas flores e
sublimes perfumes, mas mesmo estando ali, em meio às plantas, Diogo
passava-lhes desapercebido. E assim
Diogo, abandonado na crosta terrestre, crescia para dentro, deslocado da
escória do ser humano.
Certa noite
de primavera, logo após o crepúsculo, Diogo deu-se conta de um corpo sutil e
brilhante que recém avistara no céu. Então ele, como uma criança, correu e
chamou Luiza para compartilhar da descoberta. ‘Onde está, Diogo?’ Ele apontava
com o dedo indicador de sua mão esquerda, ao mesmo tempo em que fechava o seu
olho direito, num espetáculo de lhe tirar o crédito, ‘está lá, viste?’ ‘Pois eu
não vejo é nada, hôme.’ ‘É pequenino como um grão de areia.’ ‘Deixe de besteira
que eu vou me recolher’, disse Luiza, já imaginando que Diogo tivesse com
segundas intenções.
[As noites e os dias se desdobravam numa sucessão da mesma rotina, como
que para imprimir-lhes o duro signo da realidade, de uma vida tranquila e sem
sobressaltos para os patrões, do quotidiano sofrido dos empregados](2).
Foi durante esse período que Diogo acompanhou a aquiescência do firmamento ao
surgimento de nova esfera celeste: esta assomava em volume e brilho a cada
anoitecer.
(2) Esta segunda frase se refere à ilusão dos
não despertos.
Todas as
noites, um Diogo assombrado clamava por Luiza para compartilhar dessa sua
descoberta. Ela olhava, buscava, mas nada via. Ela procurava também perscrutar
um eventual desígnio secundário advindo daqueles miolos matutos de Diogo, mas
este esforço também, lhe era vão. [Foi exatamente naquela noite
quando Luiza finalmente decidiu permitir-se e ceder à aproximação do seu corpo
ao corpo de Diogo que, para seu espanto, ela vislumbrou pela primeira vez a
pedra celeste que se avolumava e avançava perigosamente em rota de colisão com
o planeta Terra](3).
(3) Esta terceira frase se refere ao despertar da
consciência.
Não tardou
muito: os observatórios ao redor do planeta só tinham olhos para o asteróide;
os cientistas, alarmados, debatiam sobre as implicações e a possível origem de
misterioso objeto que viajava em velocidade assombrosa, cruzava o espaço, e
seguia em direção a nossa Terra. Os jornais sanguinolentos, os noticiários
sensacionalistas da tv, as páginas fúteis da internet, o assunto monopolizava
atenções, causando verdadeiro alvoroço, especialmente entre os mais abastados,
os mais cultos e os eminentes, que temiam a ideia de serem esmagados como se
fossem formigas.
Luiza
observou um estranho paradoxo no transcorrer daqueles dias. Diogo permanecia
absorto pelas demandas com as plantas do imenso jardim na grande mansão. O seu
cuidado com as verdes criaturas era inabalável. À noite ele passava a admirar o
asteróide, como fizera desde a sua primeira observação da pedra celeste. Um
estranho brilho reluzia de seus olhos, algo nas entranhas daquela cabeça matuta
e surrada pelo Sol parecia começar a ferver a quentura das ideias. Diogo não
precisava ir chamar por Luiza para observarem juntos ao asteróide, ela vinha
por vontade própria encontrá-lo, beber daquela sua gradual e crescente
sapiência.
Certa noite
Diogo lhe falou da [alquimia](4), que era
para ele a supremacia do espírito sobre a mente, transcendendo a matéria. Ele
explicou sobre o conceito do [grande regenerador](5),
sobre a necessária transformação pela destruição, queima e consubstanciação de
velhos aspectos imanentes para o surgimento de padrões organizacionais mais
elevados. Luiza ouvia a essa fala admirada, ao mesmo tempo em que pouco ou
quase nada compreendia.
Outra noite
parecia a Luiza que os olhos de Diogo tinham luz própria enquanto ele
dissertava longamente sobre a mitologia romana e o deus do mundo inferior. Vez
por outra mudava o enfoque, mesmo o seu jeito de narrar, abordava a questão sob
a luz de diferente disciplina. Agora o tema era a astronomia. Diogo falava
sobre um senhor de nome [Percival Lowell](6) e
o projeto de busca do nono planeta, denominado [‘Planeta X’](7),
ao alvorecer do século XX.
Com a
aproximação gradual, verdadeira invasão do céu pela misteriosa esfera celeste,
que agora competia em área e brilho com a nossa Lua cheia (embora apresentasse
tonalidade ligeiramente mais escura e avermelhada), Luiza percebia que os donos
da mansão e os seus visitantes estavam às raias da loucura; de tão
transtornados pelo medo. Por outro lado, Diogo em sua simplicidade e pureza,
parecia exultante com a boa nova.
Foi quando a
área do asteróide no céu parecia uma ordem de grandeza superior àquela da Lua
cheia (i.e., pelo menos dez vezes maior), e a Terra dava sinais claros de
exaustão (através da intensa ocorrência de tsunamis, terremotos e a erupção de
vulcões); que a comunidade científica admitiu finalmente, em um comunicado
oficial à imprensa internacional, que o choque da pedra celeste com o nosso
planeta seria inevitável, decretando o fim inexorável da humanidade.
Luiza, que
assistiu à grave declaração em transmissão simultânea através de seu
ultrapassado televisor de tubo, estava inconsolável e foi ter com Diogo. ‘Você
já ouviu falar de [Plutão](8)? Esse, que
já foi considerado o nono planeta do sistema solar, foi rebaixado no início do
século XXI ao grau de planeta anão. Plutão e [Caronte](9)(10),
o seu maior satélite natural, caracterizam em verdade um sistema binário,
porque o baricentro (ou centro de massa) das suas órbitas está fora do volume
definido por cada uma dessas esferas celestes’, disse Diogo com sua
tranquilidade habitual.
Fato é que o
asteróide continuou a crescer assustadoramente no céu e, quando o choque e o
fim pareciam inevitáveis, o seu movimento subitamente cessou, ao estabelecer
com a Terra a configuração de um novo [sistema planetário binário no
sistema solar](11)(12).
Diogo
despertou ao meio da noite, num sobressalto. Sua pele eriçada como se lhe
soprassem graves os ventos do espírito. O coração batia forte e descompassado,
a ponto de lhe saltar pela boca. Dada a sua natureza cabocla, matuta, ignara
muito pouco ou quase nada ele apreendeu conscientemente de inusitada
experiência. Mas, de alguma forma, esse conhecimento foi incutido às instâncias
mais profundas de seu ser. [Como a semente que cai na terra,
algo em seu íntimo foi posto em movimento](13).
(13) Esta quarta frase se refere ao inconsciente
de Diogo.
Diogo
passava os seus dias cuidando de imenso jardim na grande mansão. Daquela sua
simplicidade singular irradiava o sorriso ingênuo, e um brilho por vezes
inconcebível, que habita apenas os retardados e os mentecaptos. E assim Diogo,
abandonado na crosta terrestre, crescia para dentro, deslocado da escória do
ser humano.
*
* * *
Nota de Esclarecimento:
A segunda versão deste conto, original do dia 19/09/2011, nasce hoje, no dia 16/08/2017,
apenas com notas de esclarecimento referentes a alguns conceitos e ideias de suma
importância que podem passar (desa)percebidas ao leitor (des)atento. Agradeço ao
Amigo e Poeta Milton Filho que, após uma profícua conversa através de videoconferência,
recomendou que eu prestasse maiores esclarecimentos. Espero Que Fique Claro.
importância;
plutão; caronte; astronomia; psicologia; sonho; inconsciente; consciente; despertar;
alquimia; grande-regenerador; percival-lowell; planeta-x; divina-comédia; individuação;
dante-alighieri; planeta-binário.
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