Ilustração; Martin Stranka |
Passionário, sempre, passionário.
Aquele café, aquela esquina, o final de tarde, as luzes, natural e artificial,
se confundindo. Uma brisa quente subindo pela calçada. Um leve ardor no sexo,
logo esquecido. O ar, o desejo, os rapazes. Sempre foram os rapazes. Procurava
as moças, algumas, belas, até doíam de tanta beleza, desfeitas em seu desejo de
homem, de posse. Algumas mais livres, alegres, entusiasmadas com seu trabalho,
em alguma criação, com vida. A essas desejava mais, perseguia quase, mas, não,
eram um pouco nefastas, era mais o
interior delas, a pele macia, os olhos semicerrados depois do amor. Era uma
espécie de encanto, breve, solícito. Sempre ficavam amigas. Sempre via aquele
apertar de olhos da decepção. Não no primeiro dia, ou nos primeiros, em que era
um pouco intenso, depois, nada o movia. Conseguia perceber rápido demais o
conjunto e ficção de seus mundos, ainda que se movesse daquela beleza, da
liberdade, daquelas de olhos altos tão bem colocadas em sua Villa, arte,
movimento, paisagem.
Era um escultor, um ator e um deus da
beleza plástica, um amante sempre intrigado do movimento, da luz, da secura da plenitude, do divino de alguns
momentos humanos, antes que começassem a se decompor na entropia dos ventos. E a
beleza estava neles, invencível em
Apolo, em suas linhas cruéis traçadas com movimentos precisos, sólidos,
rochosos ou altos, louros, ou não, morenos de olhos profundos, os gestos
magníficos de melhores animais da espécie. Os invejava? Também era belo, não
assim de músculos e fardos, mas de elegância, amplidão, conhecimento,
desenvoltura no belo.
Durante muito tempo ficou questionado
dessa função de macho aos pés de outro. Em alguns compreendeu, perfeição, arame
cortado em fios abstratos na mente, soluções, arquétipos bem incorporados na
ação, homens que desenvolviam papéis perfeitos em frentes nem sempre
adulteradas por arte ou sugestão. Atores de indústria, corporações, organismos
governamentais, arquitetos, médicos, cirurgiões, pesquisadores, sim, eram esses que derretiam seus dias em noites ásperas, astutas, criadoras, vulcânicas. Os
preferia aos atores, escritores, escultores como ele.. era a esses príncipes de
baixo relevo a sua dedicação. Pois, enfim, se deu conta de que tinha linhas
traçadas para além corpo, com sugestões de literatura e filosofia na forma, na
plenitude do ser. Perfeição conjugava imagem e ação.
Com alguns viveu na Villa cravada em
pedras e sitiada pelo mar. Para esses indicou suas flores, os frutos de suas
árvores, a ternura do seu povo, aquele que fazia a feira, um artesanato,
pequenos trabalhos nos consertos e arranjos domésticos. Para eles reverenciou
as vovós e seus pães corados, suas mantas, os doces esmerados do lugar. Foi
honesto e se confessou benemérito da escola paroquial, até permitiu que o
acompanhassem na missa de domingo, nas conversas com as senhoras das barracas,
suas noites de feira da quermesse... enfim, contou de seus detalhes, de seu
amor ao vento, a terra... mas, não os levou aos cafés. Não naquele, viril e
rosado na esquina do burburinho, quase assaltado no começo do calçadão pelo
movimento, febril nessas horas de carros e pessoas... não, neste, era o artista
mundano, beijava mão de algumas mulheres, convidava as senhoras das repartições
de cultura e os músicos... os rapazes,
chegavam mais tarde, magros, os cabelos longos, aqueles olhos soltos, entregues
para estrofes e vinho, muito vinho. Bebia com eles. Não ali, formavam grupos e
saiam pelas ruelas, paralelepípedo, centro histórico, fotografando algumas
vezes, uma flor, um detalhe, uma luz, a lua amarela ou sisuda, que a noite era
sempre de lua, mariposas, dessas que se
golpeiam por sobre as luminárias dos postes. Riam muito, alguém sempre cantava,
outro fornecia um ritmo diferente, existiam os que declamavam. Ele fazia alguns
esboços, sempre disputados, assinados. Cigarros, volúpia, noite. Meninas
aconteciam, a exaltação aumentava. Por ali mesmo, seja aonde fosse o lugar, se
beijavam, sussurros, gritos abafados, alguma audácia. Ele, vez em quando,
também se grudava em alguma, era quando as noites eram mais soltas, quase
companheiras do dia.
Mas, sim, nem sempre. As vezes a noite
corria e ficavam alguns. Esses que já se conheciam... e podiam ficar juntos ou,
outros, novos, arcanjos ou afobados, nem sempre atletas, encrespados ou
tímidos, ficavam. Os que se permitiam nunca usavam o primeiro gesto. Se
necessário, quebravam alguma onda, meio longa, de silêncio ou espera, com
bravuras ou confidências, camaradagens. E.. mais alguns segundos sempre, mais
alguns quarteirões, iam subindo ladeiras e voltas, então, enfim, se conseguia
perceber. Eram olhares estreitos, as vezes trêmulos, olvidados, que poderiam,
talvez, não ter existido, ou sim. Pequenas rimas, um toque de mão, e os amigos que inauguravam, talvez dessa ronda já informados, se explicavam.
Eram as melhores noites, lembrava, na
Villa, do encantamento. Aquela surda e repetida caça, promíscua, vagarosa, lenta
e elaborada, desconfiada, as vezes maliciosa, apreensão... maravilhosa a
recompensa. Um amor ou outro, talvez nada que se comparasse aos atletas ou aos
capitães, mas, verdade inteira, farejada, desejada, envolta na mais séria
verdade de cada um. Pois amavam homens e, sim, nada neles poderia indicar esse
sim. Só o outro, o desejado da noite e alguns vinténs dos seus comparsas. Esses calariam ou aprenderiam
ou assediariam. Mas, só depois.
JANDIRA ZANCHI (de Egos e Reversos, inédito).
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