quarta-feira, 1 de maio de 2019

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Pequenas histórias 334


Uma fina e insistente


Uma fina e insistente chuva vinha caindo quase o dia todo. Dava sensação de frio enroscado nos nervos da cidade. Sentia-se molemente terrível sem proporção de sair da situação de observador diante de cenas que impregnava a mente. Estava sentado na calçada, embaixo do toldo, tomando sua caipirinha de toda a semana na espera do acontecer o que deveria ou que achava que deveria acontecer. Seus olhos pulavam a procura de algo para se fixar sem achar o que lhe agradasse. Acompanhando a mente ou, a mente acompanhava os olhos, divagava na inconstante insatisfação de não ter no que se interessar. A sua frente à agenda aberta tendo ao lado a caneta numa espera compulsiva, denunciava a falta de inspiração que o atacava no momento. Na primeira linha da folha estava escrito:
“Os olhos caíram em sua mão de tanto lavar o rosto para espantar o sono.”
Acariciou as palavras devagar pronunciando uma a uma para, talvez, a inspiração escondida nas curvas gráficas, surgisse. A chuva continuava despejando umidade agora com maior persistência. A água corria pelo meio fio da calçada formando uma pequena enxurrada. No meio do quarteirão uma poça gigante de água se formava. Quem sabe o Anjo da Chuva apareceria, pensou com os olhos na poça de água.
O Anjo da Chuva é um mendigo que ninguém sabia nada dele, apenas que aparecia nos lugares mais inusitados e, quase sempre quando chovia e onde houvesse uma poça de água. Corria o boato que ele transmitia quem olhasse para ele, uma paz inigualável. Não tinha nada de anormal, ao primeiro olhar se parecia com um mendigo qualquer, mas olhando com mais atenção, notaria diferença gritante entre um mendigo qualquer e ele. Não tinha uma idade definida, isto é, uma hora diziam ter menos de vinte anos e, outra hora, mais de trinta anos. Sua postura, seu olhar, gestos, apesar dos farrapos, dos dentes mal tratados, cabelos empastado de sujeira, os mais fervorosos diziam ser ele um emissário do Senhor. Faz treze anos desde a sua primeira aparição que o culto ao Anjo da Chuva surgiu pela redondeza. Se ele entrasse num bar ou restaurante, o dono poderia dar-se por satisfeito, pois aquele dia o movimento seria grande dando um bom resultado na caixa registradora. Por isso, quando ele entrava, o dono se sentia na obrigação de alimentá-lo da melhor maneira possível. Quieto como entrou, quieto saia alimentado e agradecido sem dizer uma palavra. O mais estranho e, todos confirmavam que por isso é que transmitia a aura de anjo, ele não ingeria bebida de espécie alguma, apenas saciava sua sede com a água das enxurradas e, só tomava banho nas poças escuras e lamacentas.
- É verdade, sim - ouviu o garçom dizer ao colocar na mesa mais uma caipirinha.
- Difícil de acreditar.
- Pode crer que é, mas eu já o vi umas duas vezes e, olhe que estou trabalhando aqui uns dez anos.
- Se você diz, acredito.
- Pergunte ao dono, ele está aqui há treze anos e, durante todos esses anos, já presenciou umas seis vezes e, umas tantas vezes O Anjo da Chuva se alimentou aqui.
- Está certo.
A esquina da Rua Luiz Coelho com a Rua Augusta não era uma das mais agitadas, mas naquele momento o transito estagnado, a chuva que não parava alagando a rua, fazia com que o movimento de carros e pessoas tornasse intenso.  
“Olhe para a esquerda.”
O que? Olhar para a esquerda? Não tinha ninguém ao seu lado. Quem teria proferido tal coisa?
“Olhe para a esquerda.”
Ouviu novamente, só que com uma diferença. Ele não ouviu, sentiu as palavras dentro da mente, como se alguém dissesse mentalmente. E num movimento quase mecânico, olhou para a esquerda. E viu. Lá estava ele, O Anjo da Chuva no meio da poça de água. Com a mão em concha levava a água suja e lamacenta até a boca e bebia como se fosse a mais pura e cristalina de todas as águas.
Quando ao ouvir as palavras: “Olhe para a esquerda.”, pensou ver algo além do inusitado de todos os dias, mas o que viu foi simplesmente um mendigo se esbaldando na chuva. Nada mais. No entanto havia algo que não sabia explicar, que impunha a ele fixar os olhos na cena meio tétrica e surrealista. A embriaguês sonolenta talvez agisse de maneira a ver fantasia para logo em seguida sentir a realidade batendo no peito, como um tijolo de concreto levando-o a se entregar totalmente ao que via.
Não viu naquele Zé Ninguém um anjo na realidade. O que viu foi simplesmente um mendigo falando consigo mesmo, uma pessoa perdida na vida, naquela esquina movimentada.
Balançou a cabeça de um lado para o outro numa demonstração de incredulidade. Sorriu. Nesse momento, numa atitude nada programada, quase que violentamente, olhou para a esquerda e não viu mais o mendigo. Quando percebeu, o mendigo passava a sua frente demonstrando um largo sorriso que, a ele, pareceu de felicidade. Involuntariamente retribuiu o sorriso.
Chamou o garçom, pediu mais uma caipirinha e a conta.
Enquanto esperava, olhou o que estava escrito na agenda. Na primeira linha as palavras que escrevera:
“Os olhos caíram em sua mão de tanto lavar o rosto para espantar o sono.”, e logo abaixo:
“Se os seus olhos caírem é por que não acredita no que eles veem.” – O Anjo da Chuva.


Pastorelli / Jean Alzair

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