Ivana escrevia, quando lia. Impressões, comentários, perguntas para o autor. Os livros tinham quase tanta escrita a lápis quanto impressa. Letra miudinha, quase inelegível. Uma ou outra expressão maior vinha num papel preso com um clips.
Estava relendo Memorial de Aires, de Machado de Assis. O livro tinha muitos comentários e já não se lembrava quando os fizera. Não importava muito, sempre seria tão-somente aprendiz na arte do dizer do cotidiano urbano, da melancólica humanidade que viajava no dorso da pequena-burguesia citadina, pseudo-intelectualizada e festiva. Mas quando leu o que escrevera na última página, ficou curiosa.
A frase de Luís Costa Lima era a epígrafe:
"Que ocupa os sãos a ponto de torná-los tão distraídos?"
Leu o primeiro parágrafo:
Uma literatura que confunda a retórica com a representação social não finge a vaidade, a ambição por glória pública de uma linguagem incapaz de fecundar a realidade com o que difira do pesadelo e do absurdo.
O que quisera dizer com isso? Leu o segundo:
Legitima o perverso, o significado falsamente circunscrito – portanto perdido - na evocação sonora que arruína a música antes ouvida.
Tampouco atinou com o significado. Ansiosa, leu o último:
Por mais ensandecida que seja, uma palavra não distraída não se confunde pelo despeito e desafeto que assassina o Outro poético.
Texto denso, parecia uma linguagem cifrada. Não fazia sentido algum, agora. Procurou o livro Dispersa Demanda, de Costa Lima, de onde tirara a epígrafe. Verificou haver sido comprado no ano do acidente. Voltou aos parágrafos, à epígrafe...e desistiu de compreender.
Como um espelho, seus comentários não traduziam ou interpretavam: refletiam a sinceridade do que ia em seu íntimo.
Diz o budismo que um espírito obscurecido pela ignorância é como um espelho coberto de pó. O espelho de Ivana, não, retratava a verdade contida nas suas referências. Não mentia: exprimia os processos de construção da sua subjetividade.
Em cada idéia estavam os caminhos que, no limiar do imaginário e do simbólico, Ivana percorria ao tentar expandir a voz de fugazes instantes; ao tentar dizer, daquilo que via, à essência do ser; ao tentar falar das imagens contidas no seu corpo, sem que o espelho as tivesse retido.
Ivana escrevia muito, pois lia muito. Ensaios sobre os textos lidos, poemas para desanuviar a mente. A escrita era profunda, densa, hermética. Sisuda.
* * *
Agora, não lhe importava o que pretendera expressar com aquele texto. O que sabia daquela época era suficiente: o ano começara mal, o medo se generalizara, lutara contra ele com a palavra.
Não havia simplesmente ido de muletas à faculdade: havia se arrastado com elas pelos corredores muito encerados, com medo de cair. Cada meio-fio descido ou subido deixara um sobressalto atravessado na garganta. As rampas eram montanhas íngremes, as ruas que atravessava queimavam os pés como um areal ao meio-dia. Sentia-se vitoriosa, entretanto. E com sorrisos novos seguia.
Não havia simplesmente ido de muletas à faculdade: havia se arrastado com elas pelos corredores muito encerados, com medo de cair. Cada meio-fio descido ou subido deixara um sobressalto atravessado na garganta. As rampas eram montanhas íngremes, as ruas que atravessava queimavam os pés como um areal ao meio-dia. Sentia-se vitoriosa, entretanto. E com sorrisos novos seguia.
* * *
Chamada a dar uma palestra sobre sua pintura e o processo criativo, Ivana fez paralelos com a poesia e o teatro. Não tentou manipular a assistência, mas convenceu. Seus argumentos eram subjetivos e, contudo, possíveis. Sempre aberta a discussões, Ivana não argumentava: expunha, ouvia, buscava a troca. Talvez fosse essa a base do seu escrito no livro de Machado: uma crítica à retórica que se confunde com uma representação social vaidosa, ambiciosa por glória pública, detentora de uma linguagem incapaz de fecundar a realidade com o que difira do pesadelo e do absurdo.
Ivana disse da fragilidade das palavras, cenários e paisagens demasiado usadas, de como era difícil arrancar-lhes poemas, cenas e imagens. Referiu Peter Brooks e o seu espaço vazio, discorreu sobre a importância deste vazio para a criação livre - sem conceitos predeterminados -, para a necessidade de se desvincular de maquiagens prévias, de ornamentos que trouxessem, em si, significados. Estes seriam falsamente circunscritos – portanto perdidos - como na evocação sonora que arruína a música antes ouvida.
- Brooks ensinou-nos que “Para que alguma coisa relevante ocorra, é preciso criar um espaço vazio”; “O espaço vazio permite que surja um fenômeno novo” - afirmou Ivana.
- Havia em seu teatro uma triangulação fundamental: ator/espectador/espaço vazio. Eu acrescento: pintor/observador/espaço vazio; escritor/leitor/espaço vazio – formulou ela.
* * *
Por mais ensandecida que parecesse, a palavra de Ivana não se distraía, tampouco se confundia pelo despeito e desafeto que poderiam impedir que se constituísse o Outro- espectador, observador, leitor. Estava claro o terceiro parágrafo que escrevera no livro de Machado de Assis!
- Nada deve ocupar o território da criatividade: tomar por ponto de partida um espaço vazio propicia construir sem qualquer restrição. Um espaço em branco estimula a criação que toca as pessoas: é quando a obra nasce – disse, finalizando a Conferência.
*
[14.01.10]
1 Comentário
Sonia,
Ao contrário de Ivana - "...o ano começara mal, o medo se generalizara, lutara contra ele com a palavra" - Você começa o ano Mandando Muito Bem!
"Nada deve ocupar o território da criatividade: tomar por ponto de partida um espaço vazio propicia construir sem qualquer restrição. Um espaço em branco estimula a criação que toca as pessoas: é quando a obra nasce."
Quando um Raio Tem de Cair, Ele Cai!
Um Beijo, Jorge X
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