segunda-feira, 12 de abril de 2010

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Voo cego - um parágrafo interminável - Betusko

Na decolagem, os pés já estavam dormentes, as asas se debatiam num feroz farfalhar, não fosse assim, a alma não se desprenderia, nem o deleite em ver as casinhas caiadas, pequeninas pérolas incrustadas ao longo da beira mar, ou o pressentir do balé dos querubins no corredor tomado por ansiedades, valeria a peleja por manter a sanidade mental no lugar em que deveria estar, centrada no mais alto domínio como um yogue tranquilo e sereno em meio ao vapor improvável dos gélidos picos do Himalaia, entoando um mantra que remetia ao mergulho profundo no limiar das vicissitudes de um coração cigano, cujo compasso de ataque, avança num ritmado 2x4 sincopado, porém, opaco, sem o brilho dos primeiros anos, sem a crista altaneira do galo de briga, mas com a arremetida certeira da águia real em busca da presa, a dois mil metros de altura, num mergulho soberbo e implacável, sem resvalar, por um segundo que seja, nas copas das árvores, tampouco nas gotas gordas da chuva que descem obliquas e dissimuladas como os olhos daquela personagem famosa que povoa de maneira sutil, o inconsciente coletivo, que outra coisa não é senão a egrégora de um país repleto de mazelas, onde os búfalos e as gazelas fazem um pas de deux sublime, avançando por entre sinais de trânsito intermitentes e pantaneiras trilhas emolduradas por cavaleiros solitários que seguem o Divino ao toque dos berrantes e das bandeiras, suspeitando que os lobos perscrutam, no mistério da noite, um vacilo na cavalgada daquelas Amazonas valentes e carentes, a vigiar seus domínios como sentinelas incorruptíveis, mas que permeiam brechas nas emoções e nos desejos desvelados, colaborando com ataques viris e virulentos dos marujos, estivadores, garimpeiros de uma Serra Pelada, sem vegetação e sem pepitas que lhe façam valer a fama, mas cujos filhos tocam a bateia em busca do sonho que atravessa o rastro perdido dos segredos alquímicos dos fenícios no domínio da mente sobre a matéria, na fúria do vento arrastando as velas e balançando os grilhões dos escravos egípcios aprisionados nas embarcações infernais, que fazem lembrar um tempo em que havia a esperança do jovem Ícaro em sua aventura de voar próximo ao sol cujos raios agora refletiam na fuselagem do velho jumbo 747, já nivelado no céu com o azimute apaziguado, cumprindo sua velocidade cruzeiro e embalando um passageiro inerte na poltrona, trilhando sua costumeira viagem astral.

2 comentários

sonia regina

Intermináveis sensações nos acompanham na leitura desse parágrafo.
Nós, também num vôo cego " em busca do sonho que atravessa o rastro perdido dos segredos alquímicos dos fenícios no domínio da mente sobre a matéria";
Nós, "pequeninas pérolas incrustadas ao longo da beira mar";
Nós, "num mergulho soberbo e implacável, sem resvalar, por um segundo que seja, nas copas das árvores, tampouco nas gotas gordas da chuva que descem obliquas e dissimuladas como os olhos daquela personagem famosa que povoa de maneira sutil, o inconsciente coletivo".
Intermináveis seriam as construções, é a sensação que me dá esse texto. Plural em cada significado, majestoso engenho com as palavras e conotações. E, o mais importante, talvez, o toque. Toca-nos, profundamente.
Muitos parabéns, meu querido Betusko.

Beijos
da Sonia

Paola Rhoden

A poesia sóbria e coerente nos versos disfarçados em prosa doce, faz-me pensar no voo das gaivotas brincalhonas ao ritmo do vento, ou no sonhar entre as nuvens pelos céus no troar dos motores potentes. Grande Betusko. Abraços.