domingo, 23 de maio de 2010

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Sem olhar para trás - Sônia Pillon

Sônia Pillon.




CONTOS DE SOLIDÃO

- Sem olhar para trás -




Durante muito tempo fui uma pessoa dócil e boazinha, daquelas que não conseguem dizer um “não”. Na escola, perdi a conta das vezes que abri mão do meu lanche para os colegas e segui com fome. Deixava de brincar no parque, quando criança, para não sujar as roupas, e de sair com as amigas para ir aos bailes da escola, na adolescência, para não preocupar meus pais.

Enquanto as meninas da minha idade se ocupavam com as roupas da moda e maquiagens, geralmente ficava em casa. Quando não estava estudando, me refugiava na literatura, que me permitia viajar pelos lugares mais distantes e viver as mais loucas aventuras.

Conheci Leônidas, o meu primeiro namorado, quando tinha 18 anos. Eu era tímida e insegura como uma Gata Borralheira, e ele, exatamento o contrário! Me acostumei que ele decidisse sobre minhas roupas, os filmes que assistíamos, os amigos e os lugares que visitávamos. Apaixonada, aceitava suas imposições sem protestar, com medo de perdê-lo.

Depois que me formei em Pedagogia na Unerj, comecei a trabalhar com educação infantil. Queria atuar também no ensino médio, mas Leônidas me fez desistir da idéia. Nos casamos seis meses depois da formatura, e a partir daí conheci o inferno! As crises de ciúme de Leônidas, que antes me envaideciam, por considerar uma prova de amor, passaram a me sufocar. - Por que você se atrasou hoje, Catarina? Quem era aquele cara com quem você estava falando na saída da escola? Inútil negar que tinha um amante!

Ele passou a me bater. Foi nessa época que os meus sorrisos desapareceram dos lábios. As surras que eu sofria deixavam marcas profundas no rosto, no pescoço e no corpo, mas atingiram principalmente a minha alma, durante 10 longos e intermináveis anos!...

Uma manhã acordei de um pesadelo terrível: Leônidas tinha me matado com sete tiros, e eu estava estendida no chão, em meio a uma enorme poça de sangue. Suando frio e aos prantos, naquele momento decidi que cometeria um crime perfeito. “Quem tem de morrer é ele!”, pensei. Comecei a planejar a forma de matá-lo. Ele era cardíaco e hipertenso, e nunca ligou para dieta. Estava vinte quilos acima de seu peso e relaxava nos horários de tomar o remédio. Era sempre eu que o alcançava os comprimidos!...

A noite chegou e me esmerei no jantar. Preparei leitão assado, salsichão, e salada de maionese, que ele adorava! Ele comeu até se fartar, sem ligar para o excesso de calorias que estava ingerindo.

Como previ, de repente ele começou a ficar vermelho, com falta de ar, e a reclamar de forte dor no peito. Ele me fazia sinal para que alcançasse o remédio, mas eu não movi nenhum músculo sequer! Com os olhos arregalados, ele continuou com as mãos estendidas, agora com um olhar de quem tinha entendido tudo, estrebuchando até cair morto.

Ao constatar que tinha me livrado dele, gritei e toda a vizinhança me acudiu. Eu soluçava, me jogava no chão e me abraçava ao seu corpo, aparentando desespero. “Coitada!”, diziam. “Ela adorava aquele desgraçado, apesar de tudo!”, pensavam.

Três meses se passaram. Já estava na hora da segunda parte do plano. A própria família de Leônidas me aconselhou a viajar para um retiro, para me curar da "depressão"!... Cheguei em casa e preparei as minhas malas, apressadamente. Lembrei que na Suíça, agora, é inverno. Retirei cuidadosamente o quadro de Di Cavancanti, acionei o segredo do cofre, peguei os dólares e fui embora para sempre, sem olhar para trás!...



Imagem: Di Cavalcanti. Sem título (Figura feminina deitada), sd. naquim s/ papel

12 comentários

SÔNIA PILLON

Me sinto honrada em mais uma vez receber esse espaço para um conto meu, sem falar nas belas imagens que acompanham o texto! Neste, especificamente,da "Figura feminina deitada", por ser do Di Cavalcanti, casou perfeitamente! Grande abraço! :)

jorge vicente

Ah, amiga, eu conheço esse!!!

Parabéns por mais um texto aqui!!!

Grande beijinho
Jorge

SÔNIA PILLON

Sim, esse texto saiu na coletânea coletiva de contos Palimpsesto, pela Design Editora, em agosto de 2009, e já tinha repassado para ti... :) Obrigada pelo incentivo, querido Poeta do Algueirão!...
Não posso deixar de registrar que foi conferindo os teus belos poemas, aqui, que passei a ter acesso a esse espaço literário, que surpreende pela qualidade das postagens!
Grande beijinho para ti também, Jorge!

Maeles Geisler

parabéns amiga...

maravilhoso seu texto...as mulheres com certeza vão gostar..eheheheh..

Bjs

Unknown

Oi, Sônia. Como é bom lê-la, absorvê-la nas sílabas que estruturam seu belo texto. Parabéns, textualmente transmissível. Letras uníssonas, na busca de exprimir as elucubrações de uma mulher ferida. Há tantas mulheres feridas neste mundo...necessitando de um carinho e de comportamentos que as soltem no mundo dos "vivos".

Obrigado por compartilhar! Adoro seus textos.

Beijos, Soninha!

SÔNIA PILLON

Maeles e Charles, obrigada por me estimularem a continuar "viajando" pelo fascinante mundo da literatura, que cada vez mais renova minha alma! :)
Beijos
Sônia

Editorial

Sônia,

Termos colaboradores como você nos engrandece e incentiva: obrigada pelo que diz.

Um beijo
da Sonia Regina

nonexistent

Mais uma vez, parabéns.
Este texto me surpreende, causa espanto. Será que és a Catarina? Ou foste, em vidas passadas? De qualquer maneira, biografia ou ficção, lindamente escrito. Causa surpresa.
Abraços.
inacio carreira.

SÔNIA PILLON

hahahaha Aviso aos navegantes: Não sou a Catarina, nem alimento instintos assassinos!... ;) é apenas ficção, felizmente... hehehe
Como jornalista, em muitos momentos presenciei (e presencio) situações relacionadas à violência contra a mulher, e imaginei como seria se uma das vítimas decidisse dar fim ao seu algoz com as próprias mãos... O crime não compensa!... Abraço a todos! :)

Odete

Magnífico conto! Foi feita justiça.

Personagem Fictício

Matou-lhe pela porcagem! Uhu! Vibrei!
Adorei seu conto, Sônia, obrigado por ter enviado o Link. Envie sempre!

Abraçoos!

Suelen

SÔNIA PILLON

Inácio, Odete e Suelen, obrigada pelo incentivo! :D