quarta-feira, 30 de junho de 2010

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Denilson Neves - Uns Olhos

Uma série de coincidências levaram-me a aceitar o desafio de escrever sobre um grande momento da literatura brasileira. Na verdade, não foi bem assim. O desafio – literário - consistia tão somente em discorrer sobre o primeiro beijo, real ou fictício. O problema é que não encontrei nada de interessante na minha experiência pessoal, e tampouco socorreram-me os arquivos da imaginação. É que o primeiro beijo, em geral, costuma vir cercado por fantasias e expectativas irreais - diria quase inatingíveis -, na medida em que ninguém pode atingir um fim sem dispor do meio necessário. Por fim, refiro-me ao ato em si de beijar (bem) uma boca, e por meio, à perícia, o saber beijar. Razão pela qual a (in)experiência acaba quase sempre num duelo de línguas que não se compreendem e atrapalham-se em beijos babados, mal-dados...



A saída encontrada foi enfocar este que talvez seja o primeiro beijo mais famoso do Brasil, e que tive a sorte de “reler” em uma nova roupagem - ou nova mídia -, assistindo à microssérie Capitu, baseada no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Foi um momento mágico aquele em que vi materializar-se na tela a ontológica cena do primeiro beijo entre Bentinho e Capitu, esse sim um primeiro beijo digno de ser contado e recontado por gerações. Beijo este que, ainda sim, nunca aconteceu (será?), a não ser na imaginação do autor – e, talvez ainda mais intensamente, na imaginação dos leitores -, mas isso pouco importa. A vida imita a arte, já dizia Oscar Wilde.



Para melhor situar esta prosa, considerando que o leitor não leu ainda o romance e nem acompanhou a versão televisiva da Rede Globo, começo por apresentar os protagonistas, Bentinho e Capitu.



Sobre Bentinho, embora figure no romance como narrador e personagem, não vale dizer muito. Um garoto de 15 anos, tímido, previsível e imberbe, filho de um já falecido fazendeiro e deputado, que deixou a família em situação financeira bastante confortável. À época, passava os dias a brincar com a vizinha, Capitu.



Uma moça de 14, mais mulher do que ele era homem - nas palavras do próprio Bentinho -, Capitu é a grande personagem feminina de Machado, tão fascinante que acaba por empalidecer a personagem principal, tal qual o Curinga fez com o Batman no cinema – não é à toa que a microssérie foi batizada com o seu nome. Era de origem pobre, mas “As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.”



A estória começa com uma denúncia. Bentinho estava para entrar na sala de visitas quando ouviu o seu nome e se escondeu atrás da porta. José Dias, agregado da casa, advertia sua mãe do perigo que representava a filha do vizinho. Andavam de segredinhos, sempre juntos e, se pegassem de namoro, seria muito difícil separá-los. Urgia metê-lo no seminário o quanto antes. “Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo na Igreja.”



Sobre este dia, declara Bentinho: “Verdadeiramente foi o princípio da minha vida.” José Dias, sem que soubesse, abrira-lhe as portas para um novo mundo, por onde cruzou a ponte que separava o menino do homem. “A denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou.”



Bentinho, já mais homem que menino, corre em direção à porta do muro que separa as duas casas - mandado rasgar por sua mãe quando ele e Capitu eram pequenos, para facilitar o acesso às suas brincadeiras. Tencionava dizer-lhe que ia entrar para o seminário e observar a reação dela. Se ficasse triste, seria um sinal de que José dias estava com a razão.



Ao vê-lo se aproximando, Capitu encosta-se ao muro, como se quisesse esconder alguma coisa. Num pulo, antes que ela apagasse a prova do crime, Bentinho consegue ler os dois nome, inscritos a prego um sobre o outro:



BENTO

CAPITOLINA



Ficaram a olhar um para o outro, como se hipnotizados, e deram-se as mãos, instintivamente. Nesse ponto da narrativa, Bentinho diz sentir falta de uma nota escrita naquela mesma noite, onde não haveria erros de ortografia: “Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres.” E por um tempo imensurável, “Os olhos continuaram a dizer coisas infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham... ”



Repentinamente, uma voz os desperta do transe: “Vocês estão jogando o siso?”, pergunta o pai de Capitu. “Estávamos, sim, senhor, mas Bentinho ri logo, não agüenta.”, responde Capitu, e, para provar o que dizia, fixa os olhos nos de Bentinho, convidando-o ao jogo, mas ele, sob a ação do susto, não é capaz de rir. Senhora da situação, Capitu desvia o rosto dizendo ao pai que ele não ria daquela vez por estar diante dele. “Há coisas que só se aprendem tarde; é mister nascer com elas para fazê-las cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente tarde”



Passados alguns dias, Bentinho foi novamente ver a amiga. Os dois haviam bolado um plano para, com a ajuda de José Dias, dissuadir Dona Glória do cumprimento da promessa feita. Assim que o viu, Capitu quis saber se o agregado já havia abordado o assunto. Bentinho disse que não. Ela insistiu: “Você teime com ele, Bentinho.” Bentinho prometeu que ele haveria de falar ainda aquele dia e, inesperadamente, pediu para ver-lhe os olhos. “Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira”.



Tentando encontrar as palavras exatas para definir o que vira, Bentinho acaba por criar uma das imagens mais belas da literatura: “Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que de fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.” E a respeito do tempo gasto naquele idílio acrescenta: “Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve.”



Não podendo mais conter-se, Bentinho agarra-se definitivamente aos cabelos de Capitu, e diz-lhe que seria capaz de os pentear, se ela assim quisesse. “Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.” Mas consente, enfim, dando início a um novo capítulo, o mais bonito: O PENTEADO.



Sendo Capitu mais alta, Bentinho pediu-lhe que se sentasse. Sentou-se. "Vamos ver o grande cabeleireiro", desafio-lhe a sorrir. “O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes.” E, denotando preocupação com o julgamento de quem o lê, Bento tenta uma explicação: “Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! “



Acabadas as tranças, ata-as com um “triste pedaço de fita enxovalhada” que encontrou sobre a mesa. “Estará bom?”, quer saber Capitu. “Veja no espelho.”, responde Bentinho.



Mas ela não vai ao espelho. Ao invés, inclina a cabeça para trás, a tal ponto que Bentinho precisa ampará-la para que não caia. Pede-lhe então que se levante. Tem medo que ela fique tonta ou machuque o pescoço. Chega a dizer-lhe que está feia, mas nem isso a faz mover-se. “Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...”



E a mágica, enfim, acontece.



“Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas... “



O som dos passos da mãe de Capitu no corredor os interrompe. “Capitu compôs-se depressa, tão depressa que, quando a mãe apontou à porta, ela abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo amarelo, nenhuma contração de acanhamento, um riso espontâneo e claro, que ela explicou por estas palavras alegres: Mamãe, olhe como este senhor cabeleireiro me penteou; pediu-me para acabar o penteado, e fez isto. Veja que tranças!“ D. Fortunata, benevolente, defende Bentinho, dizendo que ninguém poria reparo no penteado. “O que, mamãe? Isto? redargüiu Capitu, desfazendo as tranças. Ora, mamãe!” “E com um enfadamento gracioso e voluntário que às vezes tinha, pegou do pente e alisou os cabelos para renovar o penteado”



Bentinho não tem a mesma desenvoltura de Capitu e, por mais que tente disfarçar, as palavras não o acodem. Vendo-o calado, encostado à parede, D. Fortunata acaba desconfiando que houvera algo mais que um penteado entre eles, o que deixa entrever por um sorriso condescendente, dissimulado talvez. “Assim, apanhados pela mãe, éramos dois e contrários, ela encobrindo com a palavra o que eu publicava pelo silêncio.”



Bentinho é salvo pela mãe, D. Glória, que manda chamá-lo para a lição de latim com o Padre Cabral, que estava à sua espera. Mas ele corre direto ao seu quarto, senta-se na cama e fica a recordar o penteado - o penteado e o resto. Por momentos, perde a consciência de si e das coisas que o rodeiam, vivendo num mundo à parte, onde somente figuram os lábios de Capitu: “Sentia-os estirados, embaixo dos meus, igualmente esticados para os dela, e unindo-se uns aos outros.”

De repente, sem querer, sem pensar, sai-lhe da boca esta palavra de orgulho: “Sou homem!”




Imagem: Channel






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