terça-feira, 6 de julho de 2010

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Milena Martins - PARA OUVIR O FADO




...É preciso tempo. Silêncio, vamos ouvir o Fado.

Lembro a velha tia portuguesa na infância, antes de a primeira nota de acordeom tocar o choro sofrido do fado português. Silêncio, ela pedia, pra ouvir o fado. Agora não mais lembranças. Já não há velhas tias nem acordeom. Apenas a voz do Fado. E o silêncio.

Eu preciso escrever, tem que ser agora, antes que eles voltem. Logo eles vão retornar com seus castigos intermináveis que eu mesma me impus. Não sei exatamente quando perdi o controle sobre o meu destino, mas, mesmo sem saber o exato momento, tenho uma única certeza. Agora todos os momentos são tarde demais. Eles vão voltar. E tenho disso mais certeza que da morte.

Já não exerço controle sobre eles, perdi completamente o domínio do meu sofrimento. Então preciso escrever. Não posso descansar até dizer a alguém que perder o controle sobre o próprio sofrimento é possível. E que esse é o maior dos sofrimentos. Preciso escrever, e te contar que não controlar o destino é o que causa o pior dos destinos. E preciso escrever, pois não posso admitir morrer sem que minha memória seja salva.

No início de tudo, eu não conhecia o meu corpo. Então dei a ordem. A culpa foi minha. Eu pedi que eles viessem e me dessem sofrimento o suficiente pra que eu pudesse conhecer o meu corpo. Eles me deram todos os piores sofrimentos. E eu gostava. Da dor eu gostava. E eu gostava dos açoites, das torturas, dos sons tão altos que me feriam por dentro, da luz tão forte que me feria por dentro, do frio muito frio que me esfriava por dentro. Achei que eu ia morrer. E antes que fosse tarde demais, eu dei a ordem.

Então eles me deram conforto. E eu gostava. Da calma eu gostava. E eu gostava da cura e do descanso, do silêncio tão grande que me curava por dentro, do escuro tão escuro que me acalmava por dentro, do calor tão macio que me silenciava e me escurecia por dentro. Eu dormi até estar completamente absorvida pela minha cura. Até que ela não me bastou mais. E antes que fosse tarde demais, eu dei a ordem.

Já não me obedecem. Escute, porque pode ser que não te obedeçam um dia. A insolência só aumenta a dor, mas a dor é tão forte, é tão forte por dentro, que chega a um ponto em que qualquer sofrimento, por maior que seja, não consegue mudá-la, porque já atingiu o máximo a que uma dor humana pode chegar. Por favor, escute. Escute o Fado...



Conto do livro Promessa Vazia (Multifoco Editora, 2010)






Imagem: Tanya Gramatikova

3 comentários

Priscila

Luz que fere e escuridão que acalma. Assim é o seu conto. Lindo e lacrimoso. Como um fado. Parabéns, Milena! O destino de cada leitor se fez ouvir um pouquinho.

Anônimo

"Eu canto o fado pra mim
Já o cantei pra nós dois
Mas isso foi no passado
Já que assim é, seja assim
Já me esqueceste depois
Já cada qual tem seu fado"

A verdadeira amizade não morre jamais. Seja bem feliz, Milena.

Unknown
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