sexta-feira, 5 de novembro de 2010

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Boletim 8





Apresentamos neste boletim 8 Urda Alice Klueger, autora cuja leitura foi indicada por Letras et cetera nos boletins 3 e 5, com os textos Quarenta e seis anos da “revolução” e Os campos de Érico Veríssimo II .
A escritora e historiadora nasceu em Blumenau/SC – Brasil. Tendo cursado Economia, é doutoranda em Geografia na UFPR e licenciada em História e Geografia. Pertence à Academia Catarinense de Letras, ao Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, à Associação Nacional de História e à Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil.
Militante de Movimentos Sociais', é autora do texto que deu origem ao filme (película) “Por causa de Papai Noel”, com roteiro de Mara Salla, e que ganhou o primeiro prêmio de 2005 junto ao Ministério da Cultura, em Brasília, e que participou de cerca de 40 festivais, inclusive em lugares como Lisboa/Portugal, Seul/Coréia, Moscou/Rússia, e recebeu muitos prêmios.
Publicou diversos textos acadêmicos em revistas especializadas, diversos contos em antologias, diversas contribuições para revistas e jornais literários e científicos, e os livros:

Blumenau, a loira cidade no sul – livro turístico - 1989 – Editora da Livraria Alemã - Blumenau, SC -

4a edição Cruzeiros do Sul – romance-histórico – 1991 – Editora Lunardelli – Florianópolis
– SC (em 2ªedição pela Editora Hemisfério Sul Ltda.)

Recordações de Amar em Cuba II – 1995 – Relato de uma viagem a Cuba – Editora Lunardelli - Florianópolis – SC

A vitória de Vitória – 1998 – romance infantil – Editora Hemisfério Sul - Blumenau/SC (em 2º edição)

Entre condores e lhamas – 1999 – relato de uma viagem a Bolívia e Peru – Editora Hemisfério Sul Ltda. – Blumenau – SC

Crônicas de Natal e Histórias da Minha Avó – Editora Hemisfério Sul – Livro de Natal – 2001 – em 3º edição

No tempo da Bolacha Maria – Editora Hemisfério Sul Ltda. – Crônicas Memorialistas - 2002 - em 2ª edição

Amada América – Editora Hemisfério Sul Ltda. - Crônica de viagens feitas pela América não-inglesa.

O povo das conchas – para-didático pré-histórico sobre o povo Sambaquiano – Editora Hemisfério Sul Ltda. – Blumenau – 2004.

Histórias d´além mar – crônicas – Editora Hemisfério Sul Ltda. – 2005

Viagem ao Umbigo do Mundo – relato de uma viagem de moto a 5 países da América do Sul – Editora Hemisfério Sul Ltda. – Blumenau – 2006

Encontro com a Infância – crônicas – Editora Hemisfério Sul Ltda. – Blumenau – SC - 2007

Crônicas de Natal e Histórias da minha Avó – 4ª edição revista e ampliada – Editora Hemisfério Sul – Blumenau - SC

Sambaqui – romance pré-histórico – Editora Hemisfério Sul Ltda. - Blumenau – SC – 2008

Trinados para o meu Passarinho – Editora Hemisfério Sul Ltda. – Blumenau – SC - 2009



Conheça mais um pouco da autora e de sua escritura



Carta circular aos meus amigos:

Como num sonho, passou-se o primeiro semestre de 2010 – e termino o mesmo encantada com a vida, mas sem saber como fazer para dar conta das inúmeras tarefas que se acumularam nela ao longo dos meses. Uma das coisas que me preocupa são as centenas de mensagens eletrônicas recebidas e não respondidas ao longo desse período – e é por isto que escrevo esta circular. Eu li quase todas as mensagens conforme iam chegando – deixei de ler um ou outro texto mais longo, mas me inteirei do conteúdo de cada um. Sei que há mensagens que queriam apenas dizer um “oi” – outras pediam providências, retorno – nas semanas que seguem irei lendo de novo cada uma e tomando as providências que se fazem necessárias.

Alguns de vocês sabem o que se passou comigo neste semestre; outros não fazem idéia, e então vou contar um pouquinho de tudo.

No ano passado houve algumas coisas bem ruins, como estar desterritorializada pela Tragédia das Águas ainda de 2008, e a doença e a morte da minha mãe. Coisas boas também aconteceram, como vir morar nesta casinha que parece uma casinha feita de felicidade, com as crianças que vêm brincar na minha varanda e os animais silvestres que vivem na mata ao fundo; a aprovação na seleção do doutorado; a viagem à Bolívia, etc.

Então entrou este ano e em março começaram as aulas do doutorado – para quem não sabe ainda, é um doutorado em Geografia, na UFPR. Lá no comecinho fiz as contas: pelo menos 90 horas nos ônibus da Catarinense (na verdade, foram muitas mais horas nos ônibus – e um bocado a mais nas rodoviárias). Lembrei do velho ditado: “se o inimigo é mais forte, una-se a ele” – e pensei que poderia aproveitar as 90 horas fazendo uma sonoterapia. Devo ter dormido mais ou menos isso – bem poucas vezes estive acordada no ir e vir. Estive em Curitiba em todas as semanas, desde março, às vezes 1 dia, às vezes 3 ou 4, às vezes 7 dias na mesma semana.

Desde o princípio, a fascinação pelos maravilhosos professores que foram aparecendo e pelas fascinantes e empolgantes aulas que me ensinavam, sobretudo ... que eu não sabia nada! É impossível dimensionar o que me foi ensinado nesse semestre em que estive tão ausente de vocês, mas posso garantir que valeu a pena, só valeu! Além dos professores e do aprendizado teórico, veio para a minha vida toda uma gama de novos amigos, os alunos de pós-graduação da Geografia da UFPR, e foi maravilhoso conhecer toda aquela gente, embora o tempo para as amizades pessoais tenha sido muito pouco, porque, basicamente, estávamos sempre a estudar ou a discutir alguma coisa sobre aulas ou teoria. Mas penso que nós nunca nos esqueceremos uns dos outros.

Estudávamos no Centro Politécnico da UFPR, que se situa antes da rodoviária de Curitiba, para quem vem do Sul, como eu – e quantas vezes saltei do ônibus em plena Avenida das Torres e fui quase correndo pelo quilômetro e pouco que faltava para chegar ao Centro de Ciências da Terra, pois era hora de começarem as aulas! Nesses dias, em quinze minutos, junto com o motorista do ônibus, comia na pequena rodoviária de Garuva, onde, no mais das vezes, havia deliciosa carne assada de panela com aipim e outras gostosuras.

Quando estava em Curitiba por mais dias, almoçava a boa comida do RU (Restaurante Universitário), menos nos finais de semana, quando tinha que me virar pelas cercanias do hotel.
Meu orientador, prof. Dr. Nilson Cesar Fraga, fazia muita questão de que eu me hospedasse na casa dele, onde eu tinha a maior das mordomias, onde me dava bem com a família dele, etc. – mas surgiu um problema: quando na casa dele, eu não produzia nada (e penso que ele também não), pois ficávamos conversando o tempo todo. Depois de umas poucas vezes lá hospedada, achei por bem me mudar para um hotel, onde não havia o que fazer além de estudar. Era um hotelzinho simples, bem em frente à rodoviária (Hotel Itamarati), e então Curitiba ficou sendo, para mim, a rodoviária, o hotel e a universidade. Com o tempo, fui criando alguma amizade com o pessoal do hotel, e principalmente com os moradores de rua que dormiam sob as marquises próximas, naquela cidade fria, onde sete graus era coisa pouca, nem se dava muita bola. Muitas dezenas de pessoas dormiam ali sob as marquises, algumas com crianças ou até com bebês – não sei como sobreviviam. A princípio, pensei que eram mendigos, mas com o tempo, aprendi que eram trabalhadores. Em alguns cantinhos, pelas redondezas, guardavam seus carrinhos de coleta, e pela manhã, quase todos eles saíam do seu leito gelado e iam trabalhar na coleta de papelão, etc. Nas últimas semanas em que estava lá, nossa amizade já estava de um jeito que quando eu, cedinho, passava por eles para as aulas matutinas, eles me cumprimentavam:
- Bom dia, dona! Bom serviço para a senhora! – a solidariedade entre a gente humilde é uma coisa impressionante – dá de 10 x 0 nas coisas que às vezes a gente vê em contato com a burguesia.

No começo do semestre acreditava que iria dar conta de todas as coisas que normalmente fazia + o doutorado, mas não foi assim. Paulatinamente, fui abandonando as demais atividades (inclusive vocês), pois o doutorado absorvia todo o meu tempo. Além das mensagens pessoais, estou com dois ENOOOORMES arquivos cheios de textos literários e políticos para ler – acabarei dando conta de tudo.

Por sorte tenho a minha prima Rosiani e sua família, que ficavam cuidando do meu cachorro Athualpa enquanto eu estava em Curitiba, e a Sandrinha, que ia tocando a Hemisfério Sul.

E hoje estou de volta à casa faltando apenas 10 créditos para fechar as disciplinas do doutorado (há diversos trabalhos para fazer em casa nos próximos dois meses, hehe!), mais a pesquisa e a tese. Tenho mais 3 anos e meio para terminar tudo, mas vamos ver se consigo terminar antes.

Então foi isto o que aconteceu. Ainda haverá uns tempos bem pesados pela frente, mas a aventura do aprendizado é uma coisa fantástica e peço que então tenham mais um pouquinho de paciência comigo.

Daqui apouco darei solução a todos os e-mails que pedem tal coisa. Daqui a pouquinho estarei na sua telinha de forma individual.

Agradeço a paciência de todos vocês. Deixo um grande abraço, e me aguardem!

Urda.





Travo de amargor

Agora faz pouco mais de 13 meses desde que Atahualpa e eu viemos morar neste pequeno paraíso. Algumas coisas mudaram, desde então: nossa casinha, que era verde, foi pintada de branco e rosa; coloquei algumas grades e portões; plantei um minúsculo jardim com as plantas das quais o meu cachorro gosta, e que cresceu tão bem que já é tempo de reformá-lo. Além da flora, criou-se aqui uma fauna inesperada e que me enche de orgulho: são 11 as crianças que brincam, atualmente, na minha varanda, embora duas delas comecem a passar pelas mudanças de hormônios da préadolescência e já não brinquem tanto. Atahualpa ama cada uma daquelas crianças, e quando elas resolvem brincar de pet-shop, ele se deleita dentre elas, sendo penteado e acarinhado, e brincando de correr atrás dos seus bichos de pelúcia.

Quando elas se forem, aquelas crianças que abandonam as bonecas para começar a pensar em namorados, haverá por aqui a Aline, da casa da frente, uma menina que está perto de dois anos e que fala com sotaque baiano, a maior graça, e as outras SEIS!!! – que nasceram num espaço de apenas cinco meses nestas duas ruazinhas de dez casinhas de cada lado! Todas são meninas e há um parzinho de gêmeas – logo a Marcela, a mais velhinha de todas, chegará ao primeiro aniversário, e eu me lembro que ela nasceu a 30.11 – como agora já e setembro, penso que em mais duas primaveras essas menininhas todas, decerto capitaneadas pela Aline, estarão correndo pelas ruazinhas acima e abaixo, e virão brincar no parquinho que é do lado da minha casa, e decerto também na minha varanda!

São tempos idílicos da minha vida, tempos tão bons que não queria que terminassem nunca, embora saiba que tenho um limite para viver aqui: em algo como vinte anos terei que sair daqui, ou tangida pela Louca da Foice, ou para envelhecer com serenidade em uma casa de repouso.

Por ora, no entanto, não quereria que nada se alterasse muito, a não ser que o ciclo da vida continuasse acontecendo, como este de meninas que chegam e que se vão, tão linda é a harmonia deste lugar, tão linda é a paisagem, tão inebriante o olor de vida das tantas plantas que se esforçam na reprodução, nestas dias de ânsia de primavera, quando minha casinha e toda a região ficam plenas de cheiro de flor.

O sinal dos tempos acaba de aparecer aqui pertinho, no entanto. É onde havia um terreno baldio, uma pequenina fábrica abandonada e a casinha de um homem. Doutos engenheiros entenderam o valor deste lugar único, e decidiram que era tempo de construir dois grandes edifícios, muito perto daqui.

- É para gente de classe média alta – confidenciou-me uma vizinha bem informada, impando de orgulho. Céus, se ela soubesse quantas baixarias acontecem na classe média alta, como em qualquer outra – já vivi em ambientes de tal fauna, sei bem as humilhações que se pode sofrer nas unhas da tal classe média alta, principalmente quando se valoriza pouco coisas como unhas bem pintadas, por exemplo.

Mas o que me incomoda mais, neste momento, não é isto. O que me incomoda serão as torres subindo na paisagem, cortando a beleza distante dos nossos morros e o nosso vale com as noites cheias de perfume, e as coisa estão acontecendo com uma rapidez impressionante. Há uma semana atrás tudo ainda estava como era – de um dia para o outro veio um trator e arrasou com tudo: o terreno baldio, a pequena fábrica abandonada, a casinha do homem – um impressionante e grande homogêneo terreno vazio nasceu em apenas um dia, e agora fazem uma cerca.

Antes que a cerca seja concluída, tenho andado por lá com Atahualpa, e é então que o meu coração dói mais que tudo: no lugar onde havia a casinha do homem, ficaram dois cachorros. Eu própria não sei mais dizer exatamente onde era a casinha, mas os cachorros sabem exatamente o lugar do seu antigo lar, e lá estão cuidando dele. Passamos lá, eu e Atahualpa, e eles vêem e nos farejam, e depois voltam para um lar que agora é apenas imaginário, e de lá não arredam pé. Meu coração fica partido quando os vejo ali, naquele lugar sem mais nenhuma esperança. Onde comem, onde bebem? Há um poluído ribeiro próximo, será que...? Mas quanto resistirão? Até vir a próxima chuva, ou o próximo trator?

O amor e a fidelidade nos seus pequenos corações caninos têm seus dias contados. Onde está aquele dono que não os levou junto? Não sabia que ali já não haveria futuro para eles além da chuva e das pedradas? Por que não considerou aquela fidelidade de toda a sua vida?

É duro, é triste. Este perfume de primavera, neste ano, está com o maior travo de amargor.


Blumenau, 05 de setembro de 2010.
Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.





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