A NASCENTE
I -ASCESE
3.
As ruínas situadas à oeste da Clareira silenciavam. Distanciavam-se os remanescentes do mundo da pedra, encaminhando-se para as dimensões mais próximas do centro. Já não dialogavam com a fada, nem se instruíam de suas preces. Duas ou três mulheres ainda continuavam a acotovelar-se ante a sua passagem, mas os seus trapos já não espevitavam uma simulação dos gestos de Margri. Pareciam, enfim, contritas da pouca valia das seculares tentativas de conformar-se ao apogeu, ao ouro da boa forma. De seus peitos não se extraíram mais do que alguns murmúrios de enfado.
- Ainda persiste e perfila a face. É de tão pouca modéstia...seus olhos não esquecem o céu.
- Prossigamos pela terra. São muitos os volteios da membrana chave. O ar que aspiramos conhece, na sombra, um caminho para o nosso feixe de felicidade. Aqui apenas compusemos o coro dos mutilados. A Nave não conseguiu arredondar-se em toda a profusão de suas partículas.Agora que se depura esquecerá as nossas margens
E nem ao menos lhe retornaram os olhos em despedida. A guerra das etnias...longa e defasada, ora em surdina, ora em armas, os anjos e os mantos estendendo a mão... sempre perdida a boa intenção. Cada qual com sua gôndola, fora a mais dura das lições.
Que os olhos se levantassem cada vez mais altos. De muito longe, quem sabe, se poderia avaliar o bem e o mal dos para aquém situados.
Margri não procurou a simulação. Antes, foi se fechando em um recolhimento cada vez mais severo. Aos poucos, à medida que pesavam a mágoa e o cansaço dos desencontros, foi despedindo-se, algumas vezes com pequenos tremores, nos vergões de terra maltratada. Os dias foram se sucedendo, turvos, decaídos, insossos de cor, lamurientos de desamor. Procurava não perceber, mais a cada remada para além do equívoco, era nítido o céu marejado de densas nuvens, o desolamento da vegetação.
- Por que ? - e a deusa desferiu no mundo da raça cinzenta um grito de desespero. Por longínquas caminhadas a terra lavrara sua sorte, confrontando-se com a resistência da rocha e o desvario da larva. Seus espíritos superiores libertaram-se em grande abstração e prazer enquanto o caos e o gelo desmontavam aqui e ali as estruturas e encontros, marcando almas e sinas.
Não era difícil de entender. Antes, de viver e escolher. Era mais generoso, fora compreendendo, deixar que cada formação fizesse sua face e sua extensão. Sabia, nos seus delírios aos confins cósmicos, que haveria acolhimento para cada tentativa. E aceitação, e evolução. Porém, nessa reunião de tantas emanações fora inevitável a guerra, a amargura, a asa ferida do Anjo.
Ansiava por retomar o caldo da vida e da esperança. Em outros rumos, construídos por uma abstração surda, sem tanta inconsciência, sem corpos pesados, hibernando-se em torno da essência primeira.
4.
Quando Margri alcançou a Clareira a noite já não vacilava. As estrelas, espaçadas, quase frias, eram de um azul nostálgico, esfumado, avançado de mariscos e éter, amoroso de ausências e serenidades. Sem plumagens de muito viço e odores de muito vigor tinha uma placidez prazerosa e mística, rendida em uma ascensão abstrata, distraída na extensão do Cosmo.
Para a fada a defloração daquela ímpia limpeza provocou uns fluídos adolescentes, brancos, marítimos em sua linearidade. A areia fruída armada em círculo de liberdade se desprendia nos desvãos das árvores altivas, longilíneas, sinuosas na rústica nobreza. A moça namorou-se das marés de equilíbrio, pontuadas para o seu renascimento. Certificava-se de que o meio, quando se devota à religião da brandura, é sempre complemente ausente de ambição. E ornava-se assim, sem margem para embuste, ao plano de si mesmo.
- Então é esse o conjunto de fatos de que sou um apêndice... lactente de primeira face. Por aqui retomarei a identidade vazada no mundo da pedra, ferida ao desencanto das excentricidades do corpo denso. A bonomia do Cosmo vazio é o melhor cordão nesse céu de satisfação, consagrado em portal, santuário da imagem visível porque reflete para além de si.
E delirava delírios de estofo branco, espumas de retidão inodora. Com as frívolas penugens dos arbustos confidenciava a segurança da esperança que era uma substancia sem recordações e nunca adiada do presente, como lhe ensinaram os Mestres. Engrandecia-se de muitos louvores por tão bem ter armado, entre as contínuas convulsões do corpo negro, essa chegada desnutrida de manejos e ensejos de grandeza.
Adormeceu nas primeiras luzes da manhã. Estirou-se em um sono sem sonhos ou divagações. Começava a liberdade na auréola da vida, na sensatez do consentimento.
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