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sta é uma crônica como outra qualquer, sobre um dia qualquer, como outro qualquer. Quem a quiser ler, não espere por nenhum acontecimento mirabolante ou filosófico — desfaça-se de qualquer expectativa mais exigente que porventura exista. Do contrário, não venha se queixar depois, pois esta é uma crônica qualquer sobre um dia qualquer como outro qualquer.
Tenho um conhecido, professor de Teoria da Literatura, que provavelmente qualificaria a introdução acima como uma tentativa de ludibriar o leitor, pois já o previno, antes mesmo que comece, de que não extrairá grande coisa da leitura, ao mesmo tempo em que aguço a sua curiosidade. De modo que, se o leitor gostar do texto, ponto para mim. Se não, azar o dele, foi avisado.
Ora... E não é uma boa estratégia?
12h30. Hora do almoço. Bloqueei o acesso ao meu computador através de uma senha e saí para almoçar. O colega que costuma me acompanhar, o Pontes, estava em reunião. Então fui sozinho mesmo. Nada contra.
Na saída, uma surpresa: chuva. Por sorte havia um vendedor de guarda-chuvas na esquina. Eles sempre aparecem quando chove, principalmente se a chuva não manda aviso. Para o meu azar, o cara só tinha modelos coloridos e estampados com flores.
— Cê nu tem nenhum preto? — perguntei.
— Tenho não. Mas esses aqui são mais bonito, vê só!
— O problema é que isso é guarda-chuva de mulher, né, companheiro?!
— Nada, brother. Os hôme tão usano tamém. Já vendi um montão hoje.
— Tudo bem. Me dá esse azul então. É o menos pior.
Quando abri o guarda-chuva os metais estavam todos enferrujados e emperrados. Reclamei:
— Cara, isso aqui tá tudo enferrujado.
— Pô, aê, foi mal! O colega deve tê dexado ele aberto na chuva. Toma esse aqui que tá melhor — e me passou às mãos um outro, esse de flores vermelhas.
Não estava enferrujado, por outro lado, não parava aberto. Reclamei de novo:
— Cara, tá difícil!
— Caraca! Dêxa eu vê otro pra você aqui.
— Faz o seguinte: eu fico com esse que cê tá usando. Pode ser?
— Pô, irmão, demorô! Leva que é teu.
— Beleza!
Protegido da chuva, parei na banca de jornal da Praça do Mascate — como de costume — para dar uma olhadinha nas manchetes. Como sempre, nada de novo: corrupção, violência e fofocas de celebridades. Meu Brasil, meu Rio.
Passei para os jornais esportivos. “Bebeto vence nas urnas”. Enfim uma boa notícia para o meu Botafogo. Gostei da gestão do Bebeto, ele merecia ser reeleito.
O quê? Estão rindo porque sou botafoguense? Por acaso vocês sabem o que disse Vinícius de Moraes a um americano podre de rico, ao indagar-lhe sobre o motivo por que ele queria deixar Los Angeles — onde vivera por 5 anos — e voltar para a “Latin America”? Entre outras coisas menos importantes ele disse: “Olhe aqui, Mr.Buster: O senhor sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?”
E vocês? Sabem? Não?... Sinceramente? Nem queiram saber. Mas que é um orgulho o Poetinha ter dito isso, ahhh... Isso é!
Hora de comer. Escolhi um restaurante que fica bem próximo a um sebo (livraria que vende livros usados) que costumo freqüentar, onde passaria depois para procurar um livro que estava esgotado nas livrarias virtuais. Como cheguei no horário de pico, tive que dividir uma mesa com outros três comensais. Odeio almoçar de frente para alguém que nunca vi mais gordo, mas não teve outro jeito.
Na mesa ao lado — essa para dois — um senhor idoso tomava sozinho uma taça de vinho tinto. Quando já não havia outro lugar disponível, um sujeito pediu licença para sentar-se com ele.
— Fique à vontade, meu filho! Tô aqui só fazendo hora enquanto a chuva não passa.
— Pois é, chuvinha chata, né?!
— Sabe que não! Eu gosto da chuva. Faz a gente pensar na vida.
Continuei minha refeição. Dez minutos depois, voltei a prestar atenção na conversa ao lado, no momento em que o senhor falava dos filhos:
— “Qual sua idade? 48? O meu mais velho tem 55. É capitão do exército. O mais novo é médico da marinha.”
O sujeito, sem parecer prestar muita atenção, apenas balançava a cabeça e engolia a comida apressadamente. Breve, esvaziou o prato e despediu-se.
— Vá com Deus meu filho! Eu ainda vou ficar mais um pouco por aqui, mastigando os meus pensamentos.
Pouco depois também eu terminei o meu almoço e me fui, deixando para trás o senhor idoso a sós com a sua taça de vinho.
Cenas como essa me fazem temer o futuro. Melhor viver o presente.
Alguns metros adiante entrei no sebo e perguntei ao atendente se ele tinha o livro “Pollyanna”. Ele me respondeu com outra pergunta: “Moça ou menina?” Pelo jeito, o título era bem procurado. “Menina”, respondi.
O livro, indicado por uma amiga que o tinha lido na infância, era um presente para a Pâmela, minha sobrinha de 10 anos. Para ter certeza da escolha, pesquisei na internet. Entre as boas referências, descobri que o livro é indicado num site sobre PNL (Programação Neurolinguística) como um belo treino em ressignificação de conteúdo. Alguém sabe o que é isso? “Pollyanna ensina às pessoas de sua relação na nova comunidade o jogo do contente, que havia aprendido com seu pai no dia em que esperava ganhar uma boneca e recebeu um par de muletinhas. Seu pai lhe explicou que não existia nada que não pudesse ter dentro qualquer coisa capaz de nos fazer contentes, e ela então ficou contente por não precisar das muletinhas”. Bonito, né? Ressignificação.
Peguei o caminho de volta. Do outro lado da Rua Buenos Aires um mendigo lavava as mãos numa poça d´água que a chuva formara numa depressão da calçada. Ao terminar, encostou-se na parede, de pé. Comoveu-me ver a expressão que se estampou então no rosto barbado daquele homem. Em seus lábios esboçou-se um sorriso sem-graça, de um pudor constrangido, enquanto olhava timidamente para os passantes como a desculpar-se. Passei e ele permaneceu lá, de pé, encostado na parede, braços cruzados abraçando os longos cabelos grudados pela oleosidade acumulada, a proteger-se da chuva sob a marquise da loja abarrotada de consumidores...
Antes de retornar ao trabalho ainda passei na loja de doces para comprar um Batom e um Halls de uva verde. Faço isso sempre. A moça do caixa nem olhou o que eu tinha na outra mão quando lhe estendi a nota de um real. Ela já sabia. Era a quantia exata: R$ 0,60 do Halls mais R$ 0,40 do batom. O de sempre. Bastava entregar-lhe o real e sair. Ainda mais que no Saara (vendido pelos marqueteiros como o maior shopping a céu aberto da América Latina) não rola esse negócio de nota fiscal, a não ser que o cliente peça. Coisas de Brasil.
Quando saí da loja aquela rotina batom-Halls me fez lembrar de um texto que tinha lido recentemente. Nele estava dito que o cérebro humano mede o tempo por meio da observação dos movimentos. Nossa noção da passagem do tempo deriva do movimento dos objetos, pessoas, sinais naturais e da repetição de eventos cíclicos, como o nascer e o pôr do sol. Nosso cérebro é extremamente otimizado, e evita fazer duas vezes o mesmo trabalho. Por isso, quando vivemos uma experiência pela primeira vez, ele dedica muitos recursos para compreender o que está acontecendo. É quando nos sentimos mais vivos. Conforme a mesma experiência vai se repetindo, ele vai simplesmente colocando nossas reações no modo automático, paulatinamente deletando as experiências duplicadas. Isso significa que, se sentimos o tempo se acelerar à medida que envelhecemos, é porque nossas experiências começam a se tornar repetitivas, e nosso cérebro vai deixando de registrá-las. “É por isso que o dia custava tanto a passar quando eu era menino e passava o dia jogando bola, soltando pipa, e descobrindo o mundo”.
Perceberam por que me lembrei do texto? O cérebro da moça do caixa (a que me vendeu o Baton e o Halls) não deve ter registrado o acontecimento — que se repete a cada dia, na hora do almoço —, o que significa que ela não tinha sentido o tempo passar. Isso tem um lado bom e um ruim. O bom é que o fim do expediente chegaria (um pouco) mais cedo para ela. O ruim, é que ela envelheceria (um pouco) mais rápido, pelo mesmo motivo.
Qual a saída? O texto diz para vivermos intensamente cada momento de nossas vidas. Parece fácil?
Fiquem tranquilos, vou ficar por aqui, nessa uma hora de almoço. Não vou mais aborrecê-los com minhas banalidades diárias. Já lhes bastam as suas, pois todos as temos, não é verdade? Até porque, se você leu esta crônica até aqui já deve estar bastante entediado, né verdade?
Retornei ao trabalho. Uma colega, ao me ver de guarda-chuva florido, perguntou em tom de gozação: “Mas que meigo esse seu guarda-chuva!”
Desbloqueei o computador, e acelerei o meu dia.
FIM
Imagem: Danilo Verpa
Imagem: Danilo Verpa
1 Comentário
Crónica bem "bolada"... Abç
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