quarta-feira, 12 de outubro de 2011

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Como em uma gangorra - Sonia Regina


Estava condenada a uma existência cotidiana naquela grande metrópole. Sina ou sentença divina, jamais saberia.
A multidão é um asilo e uma droga: nela o excluído se protege, dela o abandonado se embebeda. Ambos transitam incógnitos, como Aglaia. Viera do interior, sempre morara sozinha. Quando chegou ao Rio percebeu que precisava ditar outro ritmo para suas passadas ou o dinamismo excessivo da capital a atropelaria.
Nas avenidas ônibus bufavam e carros resfolegavam o monóxido de carbono. Automóveis e pedestres pouco se diferenciavam, mesmo depois da construção das passarelas: a fumaça os envolvia completamente, quase viscosa.
Na rua das mansões não era tanta, a poluição. Gostava de caminhar por aquela avenida larga e clara, embora não acompanhasse, até o oceano, o rio que a dividia. Incomodava-a a proximidade do mar, quando não podia banhar-se. E Aglaia estava sempre atarefada, nunca tinha tempo.
Não era por lá que procurava o brilho desejado por sua mãe, quando lhe dera o nome grego de uma das três Graças, que significa ‘esplendor’, ‘brilhante’. Sim, Aglaia brilhava. Acreditava no investimento pessoal. Estudava muito, estava sempre fazendo um curso de pós-graduação e se cuidava. Fazia hidroginástica e trabalhava bastante, não deixando passar uma oportunidade. Havia os que a achavam oportunista, mas não ligava.


Aglaia seguia atenta e, com sua simpatia natural, ia conquistado colegas e patrões, fazendo amigos. Era idealista e decidida, sistemática. Autodidata, enfaticamente protestava contra a divisão de trabalho que requer especialistas. Não acreditava no resultado de tarefas individuais desvinculadas e solitárias e era sincera quando proclamava a importância do trabalho em equipe, da necessidade do grupo e até das divergências, que considerava saudáveis fomentadoras de mudança, causas de crescimento pessoal e profissional.
Engenheira, gerenciava o Departamento de Assistência Técnica de uma pequena empresa cuja matriz ficava em Belo Horizonte. Dona de uma personalidade forte, Aglaia era cética e crítica. Mas firme e doce, era muito querida. Implacável quanto a deslizes, negligências e engodos; como nenhum outro gerente ouvia os funcionários: “ouço para dar voz”, dizia. De fato, eram os da sua equipe os que mais participavam, em todos os sentidos: do compromisso e do lazer às reivindicações trabalhistas. Aglaia, na retaguarda, num pequeno ritual celebratório velava pelos direitos deles. Isso os mantinha longe dos excessos e angariava a boa vontade da diretoria. Ela traçara uma ponte que unia os extremos da pirâmide e os contrários.
Namorara muito; amara uma única vez, aos quinze anos. Rejeitada, jurara nunca mais sofrer por amor.
Aos trinta e dois anos, Aglaia dividia o mundo em negras fatias simétricas. Adorava trabalhar; com os homens se comprometia pouco. Observadora, detectava detalhes e gostava das nuances invisíveis a olho nu.


A música era uma paixão antiga, que exercia sem tocar um instrumento: cantava em coros, desde criança. Sentia-se renovada quando saía de algum ensaio ou de alguma apresentação e não compreendia a palidez e o cansaço de algumas colegas.
Em algum livro havia lido que cada canto era um poema que ia e voltava de uma dimensão sem registro material, por onde também transitavam as auras dos instrumentos que ganhavam alma pelo toque dos dedos e lábios dos músicos. Aglaia gostara daquela idéia, que transpunha para o coro: isso explicava o seu aumento de energia.
E como explicava! Um coro funciona como um quadro vivo de criaturas que transforma sua voz individual em um instrumento, em prol de uma tarefa conjunta. As colegas que levavam isso a extremos e abdicavam da voz por uma celebração musical quase ritualística, estabeleciam uma conexão com o lado obscuro de Aglaia. Aquela passividade propiciava que ele ganhasse vida e as tornava suas vítimas.
Ela de nada tinha consciência, tampouco sabia que sua mãe fora alertada para isso por um guru, antes dela nascer. Estava predestinado e fora era essa a origem do seu nome: uma tentativa de mantê-la em contato com o esplendor da luz.
Aglaia não sabia que a sujeição de algumas colegas a ajudava a nutrir-se. Não tinha a mais pálida idéia de que sua voz sugava, daquelas pessoas, a energia de vida que faziam transcender no canto.
Os complexos negativos de Aglaia, refugiados no inconsciente, invadiam o campo da consciência através de sua voz em unidade com aquelas que se entregavam espontaneamente. Eles roubavam a energia psíquica daqueles egos para se fortalecerem no inconsciente.
Ou, dito mais simplesmente: os aspectos do inconsciente de Aglaia saíam da escuridão e vinham para a luz da consciência. Drenavam a força vital das vítimas, que ficavam fatigadas, apáticas e perdiam a cor do rosto. Enquanto Aglaia se motivava e fortalecia, certas colegas eram a expressão da desmotivação e da fraqueza.


Nas apresentações e ensaios as vozes não cessaram de pulsar juntas, reproduzindo acordes pouco banais; corpos continuaram sendo sugados em sua energia vital. Até que, para surpresa de todos, Aglaia desmaiou depois da última apresentação. “Stress, cansaço extremo, depressão grave”, diagnosticou o médico. Ninguém entendeu. Preocupada com os cansaços freqüentes das participantes, a regente suspendeu as atividades do coral.
Contudo, Aglaia não era a única a vampirizar: afinal, para que a relação vampiro-vítima se concretize e mantenha, ambos devem ter energias atuantes, como em uma gangorra. Os opostos se nutrem alternadamente. Toda vítima tem um lado obscuro forte e carrega um vampiro em potencial enquanto contrário; todo vampiro traz em si um pouco de vítima também. 

Sonia Regina



Texto finalista na 1ª etapa do 5º Concurso Literário de minicontos e haicais - Editora Guemanisse 2011

4 comentários

Jorge Xerxes

Poetisa,

Seu Conto Sobre Aglaia É Belíssimo e Inspirado!

Meus Parabéns!

Um Beijo e Feliz Dia das Crianças,

Jorge

sonia regina

Grata, Jorge, pela leitura, comentário e votos: foi mesmo um dia feliz.

Sabe, esse conto surgiu de um desafio na lista Amante das leituras: escrever sobre vampiros.

Dei uma volta bem redonda e criei Aglaia, vampira de energias.

Beijo grande, poeta!

Penélope

E quantas Aglaias sentem-se exiladas, excluídas, antes de alcançarem o ápice de uma VIDA! Há que se vampirizar energias, nem sempre boas, para sobreviver e, na maioria das vezes, de forma átona.
Mas com certeza, as poesias que os cantos abrigam transformarão-se em lenitivos, em placebos e o caminho seguirá, assim, em frente, sem tocar as vãs filosofias.
Que personagem forte e sensível, ao mesmo tempo! Excelente.
Tenho aprendido muito com as leituras por aqui.
Abraços

sonia regina

Aglaia era uma vampira acidental, Malu. Não sugava energias propositalmente.

Mas valeu você levantar isso, das inúmeras pessoas que vampirizam por estarem acuadas, precisando sobreviver.

Obrigada pela leitura e comnetário tão procedente.

Bjs