quinta-feira, 10 de novembro de 2011

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CONTAÇÃO - "Amália" (por M.Mei)




AMÁLIA


Talvez eu não devesse ter dito a ela o quanto aquilo tudo me incomodava, as neuroses destemperadas, a languidez com que preenchia os cantos da casa, o desinteresse pela vida prometida das manhãs. Talvez se eu tivesse me contido, se tivesse me contentado a viver as lembranças dos primeiros anos... Ainda houvesse a possibilidade de ela estar aqui. Quem sabe...

Estou a pensar nisso tudo desde a noite passada. Em claro. Tenho agora a sensação de que fui eu quem a matou, e não ela própria. Fui eu quem desisti: de amá-la, de tentar compreender os gritos que empedrava no canto dos olhos tristes, e que eu via. Ah, como eu via. E aquilo tudo me incomodava como o moleque com a mão estendida lá fora, na janela do meu carro. E foi também com indiferença que eu ignorei a existência dos olhos de Amália.

Ela puxou o gatilho, eu posicionei o trinta-e-oito em sua têmpora, bem perto daqueles olhos. Com todo o cuidado, devo dizer. Porque cada vez que Amália tentava alcançar-me, eu me colocava mais e mais distante. Mantinha-a afastada para que ela não percebesse o abandono de meu amor. Um cuidado para não magoá-la. Sem perceber, descuidei-me de Amália.

Passei a noite a revirar os ares do apartamento. Procurei seu rosto abatido acolhido pelas mãos apoiadas nos cotovelos sobre a mesa do café. Busquei pelo tom agudo com que ralhava comigo quando eu largava as meias sujas sobre a pia do banheiro. A ausência de Amália só podia lembrar-me da importância daquilo tudo de que eu me afastei. Ao dar cabo de sua vida, a Amália que eu mantinha distante acabou por arrancar de mim aquela pela qual me apaixonei.

Morreram as duas Amálias – a construída pelo fascínio de uma juventude saudosa e a consumida pelos desencantamentos da convivência diária. As duas. E a Amália de sempre é a de que mais sinto falta.


Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com .

2 comentários

NDORETTO

Puta que pariu, que coisa linda. Bem escrita. Meus Deus,você é muito boa nisso. E gostei mais ainda da narração imediata. Bravos mesmo!

Jéssica Kruck

"Morreram as duas Amálias – a construída pelo fascínio de uma juventude saudosa e a consumida pelos desencantamentos da convivência diária. As duas. E a Amália de sempre é a de que mais sinto falta."

Não aguento não colar uma parte do texto de novo, é daqueles que você quer carregar um fragmento sempre :) Esse deu um medo de um dia matar Amália.
Beijos!