I - A PASSAGEM
7.
- Nós somos uma unidade, Marian. Creio que um inspira o outro. Quando estivemos juntos pela última vez, eu já não podia ignorar que encontrei em você o último e mais importante giro do espelho.
- Você é , sem dúvida, o maior encontro de minha vida. E novamente preciso de tua ajuda. Vejo florir a vida pelas margens de minhas certezas, não tenho, porém, tua prática de poder. A solidão que rasteia sua base me machuca alma. Acho que você ainda precisa me ensinar a viver.
- Assim como você tão bem me ensinou. O que minha menina precisa aprender?
- Não sou mais uma menina e isso é o que me assusta. Como se faz para trazer o júbilo quando nos abandona a esfuziante juventude? A minha durou quinhentos anos, mas se foi.
- Acredito em você. Aí nos resta a segurança e a clareza da experiência, não é? Os homens nos respeitam e não mais nos tratam como um igual, antes, esperam que de nós surjam as fianças de que precisam. Os desafios e as batalhas que permearam o nosso caminho dão lugar às deferências e às recordações. Resta-nos o trono e sua quietude, pois todas as pendências serão externas, nunca mais internas. E, se aí não chegarmos, é porque nos reservou a vida o queimar rápido do talento ou a vala dos esquecidos. É assim minha maga, bem vinda ao portal dos senhores.
- Eu não o queria.
- Está enganada. Você, nos últimos anos, sofreu de grandes insatisfações e inseguranças. Por isso clareou a alma e preparou-se para triunfar sobre as feras da comodidade. Aceitou o desafio de si mesma e agora enfrenta o portal e seu sereno. Mas aqui me tens. Se te conduzirei? Novamente a nós dois. Pois só te recebi para que um dia, juntos e iguais, déssemos um ao outro o desabrochar da luz.
- Pois então me ensine e me mova na nova sede.
- Minha querida, agora, no centro de si mesma se funda, e deixe que ali permaneça o cálice com seu fogo brando e farto. Quando ao nosso coração ele chega são seus efeitos e suas bravuras que começam o dia e aquecem a noite. A espiral já está entregue a si mesma, e não mais exige de nós o esforço sobre humano para entorná-la em nossos braços. Somos a sua sede e o seu porto.
- E a solidão?
- Ela é o caminho, mas não a condição. Você poderá casar-se novamente, e será um amor de clareza e lucidez, não mais aquele que procura a fusão e o esquecimento. Quando se é finalmente uno, e esse é o estágio mais doloroso da condição humana, também se é livre e pleno. A chama dionisíaca arrefece, imantando-se em um plano de desenvolvimento mental situado ao redor e por frente.
- É o caminho da águia?
- Nem sempre. Depende da vibração, do conteúdo. Pode ser transformado de forma artística, científica ou iniciática, com ou sem platô de força e domínio.
- Eu era diferente, sinto saudades de mim mesma.
- Principalmente da primeira fase, não é? Você viveu uma juventude mental prolongada.
- Isso é ruim?
- Não. Em geral é a base, a condição para as grandes criações. Com exceção dos trabalhos em sistemas abstratos em áreas exatas, todo desenvolvimento intelectual e transcendental humano digno de nota é feito com a maturidade e por ela. Demorar a amadurecer é dar-se tempo de se desenvolver.
- Fazemos a transgressão para podermos suportar a maturidade?
- Também. Mas essa é a verdadeira condição humana. O homem só chegará ao fim de si mesmo, ao seu estar, quando a humanidade, em sua coletividade, chegar à maturidade.
- E adeus às grandes ilusões.
- Será o portal da necessidade. Em conjunto com a consciência o sistema físico da terra também terá chegado a esse estágio.
- E será menos abundante em benefícios e milagres.
- Exato.
- Tudo isso eu já entendo. O que quero é beber da tua segurança, pois para mim você é a certeza de que ao desafiar e aceitar o relógio da vida podemos nos tornar seu pulsar e referência.
- Saiba, Marian, que foi em você, na tua alegria, que eu pude libertar a espinha e decidir-me por encaminhar novos movimentos e arranjos. Entendi que já fora o forte e o dono, e que, se sempre seria amo, poderia novamente me oferecer de pasto correnteza da vida. - Por que pessoas como nós tem tantas dificuldades em exercer a humildade?
- Porque fomos gerados no centro de força e temos medo de nos afastar de sua sina, sermos tragados pelo seu turbilhão.
- Por isso procuramos os desafios do poder para só depois beijar as fadas .
- E também porque é parte de nossos signos o enfrentamento das grandes pulsões. Senão teríamos nascido em outros meios, sob outras formas.
- Mas, como somos humanos, o mais profundo de nosso ser aspira à delicadeza, ao simples deslizar nos campos da terra.
- Que só nos é oferecido depois de encimado o domínio do vulcão em que nos assentamos.
- Somos atraídos por ele porque nós próprios somos explosões da matéria. Eu, no feminino solar, você no masculino, ígneo e magnético.
- Assim, duas formas diferentes e amoldáveis.
- Teu caminho, porém, foi bem mais áspero .
- Não sou apenas o senhor do magneto.
- O maior que a terra já teve ou terá.
- Obrigado. Você é a sua melhor sacerdotisa, a colhedora de luz, trigo e justiça.
- Mas sofremos como qualquer um.
- Por que seria diferente?
- Sempre se tem a esperança...
- Mas pode-se ir para além do sofrimento. É necessário ser ao mesmo tempo temerário e cauteloso. E paciência, Marian, paciência. A espiral sempre fecha seu ciclo. Acompanhe-o.
1 Comentário
Um texto misterioso e belo, toca o coração sem exigir o entendimento absoluto das ideias, toca-nos profundamente, deixando uma névoa nostálgica como se vislumbrássemos um caminho desconhecido a ser percorrido porque esse é nosso destino.
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