quarta-feira, 23 de novembro de 2011

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A PASSAGEM 7 - JANDIRA ZANCHI


I  -  A  PASSAGEM


7.

-         Nós somos uma unidade, Marian. Creio que um inspira o outro. Quando estivemos juntos  pela última vez, eu já não podia ignorar que encontrei em você o último e mais importante giro do espelho.
-         Você é , sem dúvida, o maior encontro de minha vida. E novamente preciso de tua ajuda. Vejo florir a vida pelas margens de minhas certezas,  não tenho, porém,  tua prática de poder. A solidão que rasteia sua base me machuca alma. Acho que você ainda precisa me ensinar a viver.
-         Assim como você tão bem me ensinou. O que minha menina precisa aprender?
-         Não sou mais uma menina e isso é o que me assusta. Como se faz para trazer o júbilo quando nos abandona a esfuziante juventude? A minha durou quinhentos anos, mas se foi.
-         Acredito em você. Aí nos resta a segurança e a clareza da experiência, não é? Os homens nos respeitam e não mais nos tratam como um igual, antes, esperam que de nós surjam as fianças de que precisam. Os desafios e as batalhas que permearam o nosso caminho dão lugar às deferências e às recordações. Resta-nos o trono e sua quietude,  pois todas as pendências serão externas, nunca mais internas. E, se aí não chegarmos, é porque nos reservou a vida o queimar rápido do talento ou a vala dos esquecidos. É assim minha maga, bem vinda ao portal dos senhores.
-         Eu não o queria.
-         Está enganada. Você, nos últimos anos, sofreu de grandes insatisfações e inseguranças. Por isso clareou a alma e preparou-se para triunfar sobre as feras da comodidade. Aceitou o desafio de si mesma e agora enfrenta o portal e seu sereno. Mas aqui me tens. Se te conduzirei? Novamente a nós dois. Pois só te recebi para que um dia, juntos e iguais, déssemos um ao outro o desabrochar da luz.
-         Pois então me ensine e me mova na nova sede.
-         Minha querida, agora, no centro de si mesma se funda, e deixe que ali permaneça o cálice com seu fogo brando e farto. Quando ao nosso coração ele chega são seus efeitos e suas bravuras que começam o dia e aquecem a noite. A espiral já está entregue a si mesma, e não mais exige de nós o esforço sobre humano para entorná-la em nossos braços. Somos a sua sede e o seu porto.
-         E a solidão?
-          Ela é o caminho, mas não a condição. Você poderá casar-se novamente, e será um amor de clareza e lucidez, não mais aquele que procura a fusão e o esquecimento. Quando se é finalmente uno, e esse é o estágio mais doloroso da condição humana, também se é livre e pleno. A chama dionisíaca arrefece, imantando-se em um plano de desenvolvimento mental situado ao redor e por frente.
-         É o caminho da águia?
-         Nem sempre. Depende da vibração, do conteúdo. Pode ser transformado de forma artística, científica ou iniciática, com ou sem platô de força e domínio.
-         Eu era diferente, sinto saudades de mim mesma.
-         Principalmente da primeira fase, não é? Você viveu  uma juventude mental prolongada.
-         Isso é ruim?
-         Não. Em geral é a base, a condição para as grandes criações. Com exceção dos trabalhos em sistemas abstratos em áreas exatas, todo desenvolvimento intelectual e transcendental humano digno de nota é feito com a maturidade e por ela. Demorar a amadurecer é dar-se tempo de se desenvolver.
-         Fazemos a transgressão para podermos suportar a maturidade?
-         Também.  Mas essa é a verdadeira condição humana. O homem só chegará ao fim de si mesmo, ao seu estar, quando a humanidade, em sua coletividade, chegar à maturidade.
-         E adeus às grandes ilusões.
-         Será o portal da necessidade. Em conjunto com a consciência o sistema físico da terra também terá chegado a esse estágio.
-         E será menos abundante em benefícios e milagres.
-         Exato.
-         Tudo isso eu já entendo. O que quero é beber da tua segurança, pois para mim você é a certeza de que ao desafiar e aceitar o relógio da vida podemos  nos tornar seu pulsar e referência.
-         Saiba, Marian, que foi em você, na tua alegria, que eu pude libertar a espinha e decidir-me por encaminhar novos movimentos e arranjos. Entendi que já fora o forte e o dono, e que, se sempre seria amo, poderia novamente me oferecer de pasto  correnteza da vida.                                                                                                           - Por que pessoas como nós tem tantas dificuldades em exercer a humildade?
-         Porque fomos gerados no centro de força e temos medo de nos afastar de sua sina,  sermos tragados pelo seu turbilhão.
-         Por isso procuramos os desafios do poder  para só depois beijar as fadas .
-         E também porque é parte de nossos signos o enfrentamento das grandes pulsões. Senão teríamos nascido em outros meios, sob outras formas.
-         Mas, como somos humanos, o mais profundo de nosso ser aspira à delicadeza, ao simples deslizar nos campos da terra.
-         Que só nos é oferecido depois de encimado o domínio do vulcão em que nos assentamos.
-         Somos atraídos por ele porque nós próprios somos explosões da matéria. Eu, no feminino solar, você no masculino, ígneo e magnético.
-         Assim, duas formas diferentes e amoldáveis.
-         Teu caminho, porém, foi bem mais áspero .
-         Não sou apenas o senhor do magneto.
-         O maior que a terra já teve ou terá.
-         Obrigado. Você é a sua melhor sacerdotisa, a colhedora de luz, trigo e justiça.
-         Mas sofremos como qualquer um.
-         Por que seria diferente?
-         Sempre se tem a esperança...
-         Mas pode-se ir para além do sofrimento. É necessário ser ao mesmo tempo temerário e cauteloso. E paciência, Marian, paciência. A espiral sempre fecha seu ciclo. Acompanhe-o.

1 Comentário

Morgana Gazel

Um texto misterioso e belo, toca o coração sem exigir o entendimento absoluto das ideias, toca-nos profundamente, deixando uma névoa nostálgica como se vislumbrássemos um caminho desconhecido a ser percorrido porque esse é nosso destino.