terça-feira, 31 de janeiro de 2012

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timeo hominem unius libri*


De Alessandro Teixeira Neto e André Fenili, Janeiro de 2004

Yin

A chuva que iniciara no começo da tarde ainda não havia cessado.
Da janela de seu apartamento, Sandra observa o vai-e-vem aparentemente sem sentido das pessoas lá embaixo. Em noites como essa é que ela se sente mais sozinha. Em sua mente, idéias de solidão mesclam-se com idéias persistentes de portais para outras dimensões e curvaturas espaço-temporais.
Há aproximadamente uma hora, ela colocara um cd de uma banda estadunidense para tocar. Não que ela estivesse realmente interessada na música. Nem estava escutando. Qualquer som é melhor que o silencio quase absoluto que impera no apartamento.
Sandra não gosta da companhia de seus pensamentos.
Da mesma maneira que imagina os seres lá embaixo, Sandra também se imagina inevitavelmente presa ao non-sense que é a própria vida. Um mero peão num jogo de proporções cósmicas; um jogo no qual este peão chamado Sandra começará a ditar as regras, caso o projeto em que está envolvida evolua de acordo com as previsões.
Sandra se sente pressionada.
Apesar de questionar as próprias atitudes e até viver propondo mudanças a cada dia, as amarras que a une a outras pessoas (amigos, colegas de trabalho, o dentista, o caixa do supermercado, o motorista do ônibus, o carteiro,… ) e que representam a base do convívio social são inevitáveis. Mesmo que sejam amarras frágeis. E essas amarras sempre a trazem de volta à mesmice.
Em suma, ao tentar otimizar o problema não linear que é a sua vida, Sandra tentava sempre levar em consideração sérias restrições. E a solução sempre divergia.
Regras. Sempre regras. Regras que limitam e permitem o convívio social.
Formigas ! São como formigas. E o mais engraçado é que alguém já estava controlando essa massa contínua e randômica, apesar de sua não-linearidade e falta de robustez.
Formigas ! Sandra sabe que mesmo as formigas seguem regras. Regras impostas pela Natureza. As únicas verdadeiramente justas e não discriminatórias. As únicas regras que deveriam existir. Formigas são orientadas por ferormônios, …as abelhas… as abelhas pelas cores ou por estranhos sinais de seus companheiros, sei lá,… e nós… seres humanos… somos guiados por tendências criadas por mentes frias que estudam o comportamento humano para melhor se aproveitar de suas fraquezas e propensões, ... guiados por modismos lucrativos que não nos acrescenta nada,... guiados pelo lixo que a tv vomita diariamente dentro de nossas cabeças. Sem idéias próprias, sempre nos satisfazemos com a realização de vontades e desejos que não precisávamos ter.
Sandra espera que O Projeto realmente mude tudo isso.
Todas as coisas associadas, de alguma maneira, a esse… experimento… parecia não seguir regras racionais ou qualquer uma das pré-estabelecidas; apenas impulsos alimentados pelo espetacular inconsciente coletivo.
Especialmente hoje, às vésperas do grande dia, Sandra sente-se pequena.
Realmente pequena. Muitas vezes, durante este dia, idéias absurdas passaram pela sua cabeça. E continuam vindo. Idéias suicidas. Sandra não se considera, de forma alguma, um exemplo a ser seguido.
O interfone toca para resgatá-la de seus devaneios.
Ela hesita em atender (quer ficar sozinha); mas sente seu corpo pulsar, vivo, em direção ao dispositivo eletrônico dependurado na parede da cozinha, perto da porta.
O porteiro informa que Fred chegou.
Porra ! Me esqueci completamente !
Ela sabe muito bem o que Fred deseja e não tem certeza se deseja a mesma coisa. Hoje. Todos os
seus pensamentos estão no dia de amanhã. Em seu íntimo, Sandra espera que este seja apenas um encontro amigável e breve entre duas pessoas que se conheceram numa sala de bate-papo virtual pela Internet e que decidiram que já era tempo de se conhecerem de uma maneira menos eletrônica. Duas pessoas tentando preencher vazios.
Sandra insistiu para que se conhecessem em carne e osso um outro dia qualquer mas Fred, por sua vez, insistiu bastante que fosse hoje. Ela tem quase certeza de que a foto que Fred lhe enviara na última vez que em que trocaram algumas linhas pode não ser necessariamente a do próprio Fred. E imagina o ridículo disso tudo; dessa expectativa criada pela solidão; pelo desespero.
Enquanto o elevador sobe, questionamentos passam pela sua cabeça. Fred é um assassino, é um estuprador, é um gordinho simpático, é um moleque adolescente, é o padeiro, é um velho, é uma lésbica,… é um espião... quem é esse cara realmente ? E por que eu preciso dele ?
Quando Sandra abre a porta, o coração já esta saindo pela boca.
Surpresa !
Fred é ele mesmo, o cara da foto que parecia um artista da tv. Sempre companheiro, compreensivo, e um tanto inseguro. O cara que gosta de falar sobre MPB e jazz, que anda com o celular preso na cintura e que assiste apenas ao que ele insiste em classificar como “filmes de arte”. O cara que se acha muito intelectual. Muito superior.
Como se isso fosse alguma merda ! Tudo bem. Preciso espairecer. Estou muito tensa.
Sua impaciência vai se dissolvendo aos poucos.
Preciso relaxar. Com o desenrolar da conversa, ao longo de alguns minutos, muitos minutos, hora e pouco, Sandra começa a desejá-lo exatamente como o playboyzinho que ele é. O cara que se julga inteligente apenas porque gosta de determinado tipo de música e porque assiste a filmes que nem mesmo entende. O cara egocêntrico.
Essa vulgaridade a excita.
Gostaria que ele a beijasse, que a agarrasse, tocasse seus seios, a fizesse arrepiar-se por todo o corpo belo e liso – bem cuidado –, e finalmente a penetrasse com o vigor de um animal insano, como ela mesma, às vezes, se sentia. Dois animais insanos em um só.
Sandra insinua-se.
Fred é liso, esconde-se como um caramujo, na sua casa de suposta erudição e conhecimento. Inseguro. Inseguro, pensa Sandra. Inseguro, odeia Sandra.
A noite não passou daquilo que ela esperava inicialmente que fosse. Apenas papo intelectual regado por uma garrafa de vinho que ele trouxera. Nada construtivo.
E ela odiou isso.
“___Boa noite, Sandra. Podemos nos encontrar novamente ?”, ele diz.
Sandra sabia que ele ia dizer isso.
“___É claro”, ela responde, com um belo sorriso no rosto. Ela sabia que iria responder isso.
No fundo, tanto Fred quanto Sandra sabem que nunca mais se verão, ou que trocarão mais algum e-mail insensível. Nada será o mesmo novamente. A fantasia dera lugar à realidade. E a realidade é sempre mais impiedosa que qualquer fantasia. Para tornar a agonia de ambos ainda maior, eles sabem, no íntimo, que se desejaram naquela noite e que poderiam ter ido mais longe se não tivessem seguido (mecanicamente) tantos padrões de comportamento. Se não tivessem tanto medo de errar, de por tudo a perder.
Enfim, mais uma noite perdida. Sandra, pelo menos, conseguiu diminuir um pouco a ansiedade em relação ao dia seguinte, cujo primeiro minuto acaba de passar.
Ela enche um copo com água.
Toma uma dose extra de anti-depressivos (só por garantia).
Apaga a luz do quarto.
Amanhã será um novo-velho dia. Amanhã será hoje. Hoje será ontem. Ou qualquer coisa assim. Mas será um dia inesquecível.
Regras.
Precisava fazer alguma coisa para mudar radicalmente tudo isso. Para mudar as regras. Ou acabar com todas elas.
Mudar sua vida, seu mundo. As pessoas.
E, afinal, foi por isso tudo, desde o início, que aceitou o convite para integrar o grupo seleto que participaria d’O Projeto.

* * *

Na mesma noite em que Sandra e Fred trocavam amenidades, do outro lado da cidade, Natália terminava de ler ‘The Iluminatus Trilogy’, a bíblia da contracultura.
À sua frente, na escrivaninha, alguns volumes da hq “The Invisibles” e um livro caro de Hieronymus Bosch em alemão, conseguido a muito custo com um amigo que cruzara o Atlântico.
Na sala ao lado, seus pais discutiam novamente e ela sabia que alguma coisa mostrada na tv tinha começado a briga. Eles já deveriam estar dormindo. Pelo menos estariam quietos. Ela já deveria estar morando sozinha.
O telefone toca e isso faz a discussão na sala cessar por alguns instantes. O que é um alívio para Natália mas não para os seus pais, que já têm as sucessivas brigas integradas à rotina.
A mãe grita da sala que o telefone é para ela e recomeça a discutir com o pai, já levemente embriagado. Natália surpreende-se. Não esperava a ligação de ninguém àquela hora da noite, enquanto terminava suas leituras e aprontava-se para dormir.
É Fred.
“___Não disse que iria sair com alguns amigos?”, pergunta ao namorado.
Ele parece um tanto atrapalhado, diz que tiveram que voltar mais cedo porque um deles começou a passar mal e que sentia saudades. Insiste para que Natália vá ao apartamento dele. Mesmo não estando disposta, Natália diz que vai encontrá-lo.
No seu intimo, ela quer punir os pais. Deixá-los preocupados. Talvez se tiverem alguma coisa a mais para pensar, deixem de se preocupar tanto consigo próprios. Com pequenezas do dia-a-dia. A vizinha do apartamento ao lado já reclamara diversas vezes ao síndico sobre essa gritaria tarde da noite.
Para sair, ela discute com a mãe, que aponta para o relógio e diz que isso não eram horas de sair, e com o pai, que ainda acha que ela é virgem, e segue.
Ela precisa encher o tanque do carro.
Fred a beija da mesma maneira, morna, dos últimos quatro anos em que estão juntos. Na verdade, só foi diferente na noite em que se conheceram. É sempre assim, pensa ela.
Fred parece frustrado. Ele recomeça a velha ladainha cine–litero–MPB–jazz–intelectualóide ao mesmo tempo em que tira a roupa da companheira peça por peça, penetrando-lhe a vagina. Ela está de quatro – posição que odeia.
Coisas entrando ou saindo da bunda sempre fazem Natália se lembrar de Bosch. Ela até enumerou algumas dessas coisas que percebera nas pinturas do artista holandês. Todas elas inusitadas: moedas douradas, flechas, uma flauta, uma muleta, um galho, um bico longo de um pássaro estranho, algumas cordas de uma imensa harpa, corvos,… A única vez em que percebeu algo que fazia sentido foi um peido no quadro “O Juízo Final”. E saia da bunda de um demônio direto para a cabeça de um condenado.
Natália gostaria de entender Hieronymus Bosch.
Natália gostaria de entender Fred.
Sim. Hoje alguma coisa parece diferente com ele. Está ainda mais distante.
Mais frio. Mais mecânico.
É a gota d’água.
Ela termina o namoro e volta pra casa bem antes das duas da manha. Natália odeia o fato de Fred não ter insistido para que continuassem juntos. Na verdade, tanto ela quanto Fred pouco se importam com isso. O amor já fazia parte do passado distante.
A gente não tinha mesmo nada a ver, pensa Natalia.
Fred continuou ali, sentado nos sofá. Talvez repassando a sua vida. Assim que o dia raiar, ele atenderá mais um de seus clientes. Geralmente cidadãos de classe média-alta, defendidos em seus “direitos” com eficácia proporcional aos seus contracheques – Fred era um doutor da lei. Considerado A Raposa entre os seus colegas de profissão, ele conhecia bem as regras jurídicas e, principalmente, as suas lacunas. Conseguia fazer com que as regras e as não-regras o favorecessem e contentava-se apaticamente com as suas possibilidades e limitações. Canalizava suas frustrações profissionais (e era frustrante tirar alguém da prisão cuja palavra CULPADO estava escrita em letras garrafais bem no meio da testa) nas relações inconstantes com as mulheres.
Os pais de Natália ainda estavam acordados quando ela chegou. Eles sempre fazem isso. O retorno da filha é um alívio e eles estão sempre prontos para consolá-la, mesmo tarde da noite; prontos para agradecer a todos os seus santos de devoção pelo retorno seguro da filha.
Natália valoriza o momento, gosta de ser o centro das atenções.
Ela sabe que as discussões não recomeçarão nas próximas horas.
O telefone toca novamente. Todos se assustam. Natália pensa que é Fred, arrependido. Ela atende. É o pessoal d’O Projeto, convocando-a para o experimento que será realizado naquela manhã. Ela diz que comparecerá sem falta, mas diz isso usando outras palavras.
“___Quem era, minha filha, a essa hora ?”
“___Ninguém, mãe... Era o Fred. A gente terminou. Agora eu preciso dormir um pouco”
Sandra acorda cedo. Bem mais cedo que o habitual. Hoje ela não quer chegar atrasada sob hipótese alguma.
A chuva havia parado há pouco e a cidade ainda estava molhada.
Escorregadia. Triste.
Ela espera pelo ônibus. Sabe que já devia ter comprado um carro.
O ônibus chega cinco minutos atrasado e está cheio. Como sempre. Sandra tenta se equilibrar e esquecer o odor insuportável de suor a cada centímetro ao seu redor.
No banco ao lado, uma mulher termina de beber o refrigerante e atira a lata pela janela. Sandra pensa em repreender a mulher, em dizer como ela estava emporcalhando a cidade e que poderia ferir alguém. Iniciar mesmo uma discussão. Porém, antes que pudesse escolher as palavras certas para começar, um velho se aproxima das duas e, ao vê-lo, a mulher que atirou a lata pela janela cede-lhe o lugar.
Sandra não diz nada à mulher que agora encontra-se em pé ao seu lado, mas pensa seriamente sobre a educação que essa pessoa deve ter tido. Talvez ela fosse apenas ignorante em relação ao fato de que não se deve atirar latas de refrigerante para fora de janelas de ônibus. Isso não a livraria da culpa, claro. Sandra sabe que muita gente é ignorante por pura preguiça.
Quando Sandra chega à universidade, todos os outros cientistas já estavam lá no estacionamento. Natália também já se encontrava lá, apesar das duas doutoras não se conhecerem. Amenidades formais são trocadas e todos dirigem-se aos carros que já os esperavam. Alguns desses carros possuíam vidros escuros e Sandra sabia que pelo menos dois deles (eram quatro ao todo) jamais seriam utilizados novamente.
Em quarenta minutos eles estavam chegando n’A Fazenda.
A Fazenda.
Nem todos se conhecem. Apenas mais um dos inúmeros procedimentos de segurança do complexo ultra-secreto. No entanto, cada um deles está, de alguma forma, envolvido n’O Projeto.
E estão todos ansiosos.
Imediatamente, grupos são organizados e iniciam-se os procedimentos para A Interação, um passo além de qualquer brainstorm já imaginado.
As mentes mais privilegiadas são conduzidas a um lugar conhecido apenas por A Sala.
A Sala.
Sentados em volta de uma imensa mesa de mármore repleta de pastas, planos e baralhos de cartas, os poucos privilegiados compartilham d’A Bebida. O líquido esverdeado os deixa mais leves, permitindo que as idéias inconscientes sejam verbalizadas sem que a inibição ou a manipulação da consciência interfira no fluxo do pensamento. Acompanhando A Bebida, eles compartilham d’A Carne, a qual, temperada por três Colaboradores com condimentos cuidadosamente selecionados e assada por outros três Colaboradores em temperaturas meticulosamente calculadas, era fatiada cuidadosamente por outros três, enquanto outros três A serviam.
Para um improvável intruso que porventura estivesse espionando aquele aglomerado de mentes ilustres, a sensação que sentiria seria a de estar em meio a um imenso mercado de peixes (em época de feriado prolongado). Todos falando ao mesmo tempo; ninguém entendendo ninguém. Cada cientista um nó n’A Rede.
Pura energia cinética. Movimento. Cada um, o louco moto-continuo que aciona engrenagens esquecidas.
Na verdade, somente os ocupantes da sala conseguem vivenciar plenamente e compreender o que fora denominado de A Interação. Um estado de lucidez supra-humano que sublima o ego e estabelece, através da completa dissolução do individual, provocada pel’Os Aditivos n’A Bebida, uma fusão de diferentes criaturas em um só Ser, em uma só Mente. Formado pela algazarra induzida, O Ser Essencial, A Mente, fortalece-se n’As Gargalhadas, n’O Jogo de Baralho, n’O Casal que foge para O Canto, em busca d’A Privacidade. Todo ato resulta em algum tipo de informação.
Naquela sala não existia uma única personalidade. Existia, isto sim, A Interseção d’As Posturas, d’As Experiências, d’Os Medos. Uma Assíntota para A Energia pura d’A Vida. Para O Conhecimento. Para uma compreensão que qualquer uma das mentes isoladas não conseguiria jamais alcançar.
Enquanto alguns ainda se deliciavam com A Carne, Natália e Cassiano, depois de muito apreciarem A Bebida, buscaram a privacidade d’O Jardim. Essa era a terceira vez que Natália participava dessas reuniões. Ela havia sido selecionada para O Projeto há cinco meses. Ainda anda pelos corredores d’O Complexo com certa humildade. Todos ali parecem saber mais do que ela. No entanto, era ela a queridinha do todo-poderoso.
Dra Natália, estudiosa de lingüística, obsessiva quando o assunto é literatura (qualquer que fosse) e comunicação entre seres vivos (racionais e irracionais).
Domina meia dúzia de idiomas. Prefere sempre ler os originais. Não acredita em traduções.
A depressão da noite anterior, o término do relacionamento com Fred, o efeito d’A Bebida, a excitação do que estava para acontecer e ela já não teme encarar diretamente o olhar de raio-x do respeitável Dr. Cassiano. Nem a grande diferença de idade a aflige. Entre As Mulheres, comenta-se que o doutor possui a privilegiada capacidade de enxergá-Las nuas.
Talvez seja algo que ele tenha aprendido naquele livro maldito, comentavam.
Natália não tem mais amarras para o tesão.
Dr. Cassiano, do alto de sua auto-confiança e de seus quase sessenta anos de idade, crava sua vara no cu da Dra. Natalia que, de quatro, berra de prazer. Não há tempo para pensar em Bosch. Seus corpos encontram-se fundidos, praticamente ocupando o mesmo lugar no espaço. As mulheres envolvidas n’O Projeto tinham desenvolvido esse estranho desejo e conseguiam ter visões quando eram penetradas por trás.
Natália sente uma corrente elétrica – um raio – atravessar-lhe o corpo e rasgá-la de cima a baixo.
Ela vibra... quase seis minutos de gozo ininterrupto!
Ela nunca havia sentido isso antes.
E Fred possui metade da idade do doutor.
No final do processo d’A Interação (que algumas vezes durava dias), após dados terem sido cuidadosamente analisados e modelos propostos e ajustados, passava-se para a próxima fase. E a fase seguinte, a qual, até o presente momento, jamais lograra sucesso algum, envolvia o mecanismo supremo: A Faca.
A primeira vez em que O Portal foi aberto, aconteceu por acidente.
O alquimista Ambrosius, durante os anos maravilhosos e enigmáticos da Idade Média, preparava experimentos arcanos com o intuito de determinar o coeficiente de atrito entre as esferas celestes, conforme idealizado por Leonardo da Vinci.
Suas experiências foram relatadas passo a passo no proibido (e condenado pela igreja até 1966) Livro Negro do Atrito entre as Esferas Celestes.
O castelo aonde desenvolvia seus experimentos colapsou misteriosamente em uma noite de chuva e Ambrosius desapareceu da história sem deixar vestígios.
O livro foi encontrado, anos mais tarde, sobre os restos de sua mesa de trabalho mas o corpo do alquimista jamais foi descoberto.
O Livro Negro permaneceu nos porões secretos do Vaticano por décadas, até um bispo, com intenções seculares, apossar-se dele indevidamente. Alguns diziam que ele fizera um pacto com o demônio em algum momento de fraqueza; outros diziam que seu demônio foi a ganância. Seu nome era Gálio.
Gálio, tentando escapar de uma secreta perseguição levada a cabo por membros de uma ordem secreta dentro da igreja, viajou ao Brasil sob pretextos de evangelização (era a época da Contra-Reforma) e morreu poucos dias após sua chegada ao continente americano, tendo contraído uma doença nativa. O livro, que não largava sob hipótese alguma, fora enterrado com ele sob sua paróquia em algum lugar do nordeste brasileiro.
Na década de oitenta, um padre local, sem muita criatividade e entediado com a rotina da paróquia, resolveu fazer reformas na capela e encontrou, em um dos buracos sob o altar, o cadáver do bispo. E o livro proibido.
Através de canais burocráticos e acadêmicos (e de uma certa soma em dinheiro), O Livro veio parar nas mãos do físico e doutor Cassiano Pompeu Xerxes, que idealizou O Projeto a partir dessa descoberta e cuja sanidade é mantida sob suspeita pela maioria dos colegas dentro dos círculos acadêmicos.
O Dr. Cassiano não larga o livro sob hipótese alguma. Anda para cima e para baixo d’O Complexo com o enorme volume debaixo do braço. Sandra sabe sobre a história envolvendo o livro (e alguns boatos também) e sempre teve curiosidade de folheá-lo. Natália tocou no livro uma única vez, e desenvolveu uma paixão doentia por Hyeronimus Bosch.
De acordo com as teorias desenvolvidas pelo Dr. Cassiano, seria necessária uma grande quantidade de massa cerebral vibrando numa mesma freqüência para que a consciência coletiva não fosse tragada para outras dimensões do espaço-tempo e se perdesse em contextos ainda não explicados satisfatoriamente (O Outro Lado). Era preciso abrir o portal mas manter o pé fixo na própria realidade.
“___Exatamente como fizera Ambrosius!”, frisava sempre o impaciente cientista.
Naquela época era mais fácil; havia menos distrações, lamentava-se o doutor. Apenas uma mente poderosa que valia por esse punhado !
O Doutor Cassiano Pompeu Xerxes, tido como um gênio precoce e de uma personalidade difícil, havia perdido muito de sua credibilidade depois de apresentar as suas idéias sobre O Projeto em congressos científicos nacionais e internacionais, discorrendo sobre o processo de seleção d’Os Candidatos que participariam d’O Projeto. Suas palestras eram consideradas obscuras. “___Perdeu o juízo !”, era a opinião dominante no meio cientifico. Exatamente como ocorrera nos primórdios da Teoria do Caos.
Os Cientistas eram indicados exclusivamente pelo Dr. Cassiano e com o intuito de se atingir a tal Massa Critica Cerebral (MCC). Cada um era julgado pelas suas realizações profissionais, pelas realizações pessoais e por critérios motivacionais – conhecidos apenas pelo Doutor.
Montada sob uma estrutura treliçada carregada de sensores e atuadores desenvolvidos especialmente para esse propósito, uma enorme faca com fio de espessura quântica pende pronta para cortar pela segunda vez o tecido tênue da realidade.
Os cientistas colocam seus óculos especiais e, protegidos atrás de centímetros de materiais isolantes e vidros reforçados, preparam-se para bisbilhotar a paisagem que se encontra do outro lado.
A faca desliza.
Não há som. O tecido da realidade é tênue como a seda.
No meio da sala especial, de formato octogonal e livre de qualquer outra mobília, abre-se um orifício vertical de aproximadamente seis metros de extensão.
Um rasgo na realidade pronto para ser atravessado de um dos lados para o outro.
Um rasgo pronto para gerar novos conceitos e uma nova física, uma nova matemática, uma nova engenharia, uma nova biologia,...
Um flash de luz e a percepção expande-se.
Os Cientistas ainda estão ao redor da sala octogonal aonde deu-se A Ruptura. Mas, ao mesmo tempo, estão em muitos outros lugares. Em outros países, em outras dimensões. Talvez seja sempre assim quando alguma nova idéia nasce; quando a compreensão de algo se faz. Um cego enxergando pela primeira vez, vendo um mudo falando pela primeira vez, e sendo ouvido por um surdo a escutar pela primeira vez. Aquele instante singular é a pura emoção d’A Descoberta.
Os seres animados e os seres inanimados: as borboletas e o ar que lhes fornece a sustentação para o vôo estão tão emaranhados de Significado e Unidade que as extremidades de suas asas, ao se moverem, pareciam se dissolver – sublimar-se – numa razão inversa do acúmulo de energia de seus corpos lepidópteros. Síntese d’A Entropia, sem a necessidade do apelo às hipóteses, aos postulados e algebrismos.
Os seres animados queimavam em contato com os seres inanimados. Fato:
A Energia era visivelmente consumida. A Chama d’A Vida rumava inexoravelmente para O Esgotamento. Sete palmos abaixo d’A Terra – novamente Minerais – era O Destino de Cada Qual.
A amplitude d’A Percepção era simultaneamente libertadora e inflexível. A mesma ferramenta cortante que possibilitava a transgressão de leis naturais traga d’Eles o canal de comunicação com o mundo tal e qual o conhecemos.
Eles ainda estavam lá. Mãos espalmadas sobre as paredes de vidro da sala principal d’O Complexo. Boquiabertos. Babando. Caso fosse possível, porém, ao cidadão comum, adentrar-se a esse local sem ser dizimado por algum sistema hitech de defesa, não encontrariam ninguém.
À medida em que Os Escolhidos permitiam-se estar aqui, acolá, e simultaneamente em dimensões inimaginadas, perdiam os elos com O Lastro que os prende ao mundo aonde nasceram. Para prende-Los n’Outro mais amplo. Que engloba este e muitos outros. Como sub-conjuntos numa lição de matemática elementar de um deus.
Mas agora está claro que, n’Este Espaço, os elementos, apesar de complementares e dependentes, eram conscientemente intransponíveis. Se você é uma formiga, não entende por que o homem faz a guerra. Se você é homem, não sabe o por que do transporte de gravetos (e por que o homem faz a guerra). Num sentido mais amplo é possível compreender-se a ambos. Em contrapartida, é impossível explicar-lhes. Por que necessariamente O Conhecimento está d’O Outro Lado. E estando d’O Outro Lado, como voltar?
Seus Corpos pulsam numa freqüência pouco superior aos 3 hertz. O Coração quase saindo pela Boca. Transpiram muito. Sublimam.
E todas as Suas Esperanças estão depositadas no Dr. Cassiano.
Todos acreditam que Ele sabe O Caminho de volta.
Na amplitude das possibilidades de percepção, sabem que uns são tão capazes quanto os outros. Sem As Amarras e As Fronteiras, são tão Loucos, Magnânimos ou Infantis. Cardume de Almas n’O Oceano Etéreo.
Doutor Cassiano fez passar pela corrente de almas a sensação de que eles estariam de volta em breve.
Nessa nova condição, eles podem ser aquilo que sempre desejaram ser.
Completamente ensandecido, e com uma vontade cada vez maior de comer o cu dos outros, o doutor insaciável explicou ao grupo que todos voltariam para casa assim que ele fosse presidente dos Estados Unidos pelo menos uma vez.
Nasce uma nova ciência.

* * *

O rasgo permaneceu aberto por apenas alguns segundos (mas o tempo, então, não possuía significado algum). Assim que o portal se fechou e todos os dados foram corretamente coletados, os cientistas voltaram uma vez mais à própria realidade (embora já não soubessem mais o que isso significava). Estão exaustos. Por uma fração insignificante de suas vidas, experimentaram apenas o que os deuses experimentam.
Sem perceberem, haviam trazido consigo O Vírus.
Possuindo e não possuindo seus corpos ao mesmo tempo, O Vírus deseja entrar em contato com esta realidade. Transformá-la. Moldá-la. Tornar única todas As Realidades.
No final do dia, quando todos se preparavam para voltar as suas insuspeitas rotinas, um bule de café curva-se com toda delicadeza e diz Até amanhã para A Servente.
E ela desmaia.

Yang

Natália sabe que alguma coisa saiu errado. Ela tentou se informar, mas todos os canais de comunicação com O Projeto haviam sido cortados. Não havia mais acesso a’O Complexo e até o Dr. Cassiano preferiu não falar no assunto. Ele mal teve tempo para ela.
A humanidade enlouqueceu completamente.
Ela jamais esqueceu o dia em que o aparelho de tv levantou-se da cômoda aonde havia sido depositado e começou a andar pela casa. Com braços e pernas finos e aquele cabeção sintonizador. Ela estava sozinha e pensou que ainda estava dormindo. O aparelho de tv andou para lá e para cá, brincou com o cachorro e depois escutou um pouco de rádio. Ou será que estavam conversando ?
Desde então, seus pais pareciam estar cada vez mais dispostos a seguir ordens ou a tentar satisfazer os caprichos desse novo membro da família. Eles ficam sentados um de frente para o outro por horas, seus pais e Tv. A maior parte do tempo, apenas Tv fala alguma coisa. Natália espera que eles não estejam pensando em casá-la com o eletrodoméstico.
Tv nunca teve muita influência sobre Natália.
Ela corre para a janela ao ouvir alguém saindo do prédio. Sim. O Velho Antônio está saindo novamente para levar seu urinol quadrúpede para passear.
Eles são inseparáveis.
Em um dos apartamentos no prédio em frente, uma mulher conversa carinhosamente com o vibrador que dança freneticamente dentro dela.
Então, Natália acorda em um outro dia e parece estar tudo em ordem de novo. Ou pelo menos a velha ordem a que estamos nos acostumando há décadas.
Fred passa os seus dias conversando com os seus livros de Direito; livros que o ensinam a tripudiar sobre os humildes e os ignorantes e a extorquir grandes quantias dos incautos. Eram livros astutos e egocêntricos, manipulavam as idéia de Fred e forneciam-lhe O Poder que ele, por si próprio, seria incapaz de obter.
Divertiam-se com isso. Sentiam prazer em manipular o advogado como a um fantoche. Dia e noite. Certo dia, um livro sobre Direito Penal cagou em sua boca enquanto dormia.
Fred pensava muito sobre a noite em que encontrara Sandra. Isso tem feito com que ele saia cada vez mais com prostitutas.
Ele acha que está ficando louco. Sempre que mentaliza Sandra, esta transmuta-se em Natália. Quando lembra da ex-namorada, logo a garota que conhecera via internet ocupa o seu pensamento. Era como se as duas estivessem fundidas numa só. E ambas haviam descartado-o de suas vidas.
Fred imagina se algum dia irá conseguir fugir dos livros.
Então, Fred acorda no dia seguinte e Sandra é Sandra e Natália é Natália. Os livros nem falam nem cagam e não existe justiça sobre a face da Terra.
Natália comunica-se constantemente com o Dr. Cassiano.
A experiência sexual que haviam desfrutado n’O Churrasco havia deixado um vinco em seu coração. O mesmo parecia não ter ocorrido com o Dr. Cassiano, que sempre aparenta demasiado interesse pelas suas pesquisas, acrescido de um semblante de preocupação desde Aquele Dia. Ele parece estar sempre procurando por algum Elo Perdido. Vez por outra eles encontravam-se para furtivas noites de prazer.
Dr. Cassiano ainda nutre grande predileção pelo cu de Natalia e, embora esta ainda fosse arredia à idéia, no fundo sabia que este era o único elo que os unia.
Essa tara permite que o Dr. Cassiano a penetre com todo o seu vigor, e faz com que ela vibre entre urros de uma dor insuportável e gemidos tórridos de prazer.
Nestes encontros, jamais comentavam nada sobre O Projeto.
Natália não conseguia se acostumar à idéia de que o doutor fosse completamente ignorante quanto ao que estava acontecendo em todo o planeta.
Ele, com certeza, a teria contado. Ela suspeita que o eminente cientista sofrera algum tipo de lavagem cerebral.
Mas se o poderoso Dr. Cassiano não era realmente a mente por trás d’O Projeto… quem ?
Esse pensamento assusta Natalia.
No dia seguinte, ela acordou e ainda era virgem.
Sandra continua sozinha.
Estranhamente, depois d’O Churrasco, a consciência da falta de atividade sexual já não a abatia como antes. Em algumas manhãs, logo após o despertar, ainda sentia um ardor sensual partindo do seu ânus virgem que a deixava toda arrepiada por quase quinze minutos.
Há duas semanas, o lixo acumulado na cozinha atraiu uma fileira de formigas vindas, talvez, do apartamento ao lado. Imediatamente, molhou um pano qualquer e tentou erradicá-las. Ao abaixar-se, ouviu uma voz vindo lá do chão que a fez mudar de idéia.
A voz veio de uma minúscula mandíbula e dizia algo sobre um deus. No mesmo instante em que a voz começou a se propagar pela cozinha, de mandíbula em mandíbula, todas as formigas pararam suas atividades e se reuniram ao redor de Sandra.
As formigas oravam.
A partir desse dia, Sandra tornou-se o Deus das formigas.
Desde então, mais formigas vêm chegando a cada dia, em peregrinação, ao apartamento de Sandra e ela pensa seriamente sobre a questão.
As formigas não a machucam e saem do caminho quando ela passa. Se, inadvertidamente, ela pisa em algumas, as demais entendem como destino. E rezam com mais força ainda.
Sandra queria saber como essa loucura toda começou.
E por que não encontra alguém que possa lhe dar alguma explicação.
Um outro dia, Sandra acorda e o único objeto de adoração em sua casa é a imagem de Santa Bárbara que sua mãe insiste para que ela deixe em uma das prateleiras da estante.

* * *

Certa manhã, quando vai às compras, Sandra depara-se com uma bela mulher na prateleira ao lado. Mesmo sendo mulher, ela sabe reconhecer e valorizar um belo exemplar da espécie. Acena com a cabeça. Natália corresponde ao cumprimento com um gesto leve e doce. As doutoras nunca haviam se percebido como naquele momento. Perceptivelmente, existe uma grande identificação entre as mulheres, um forte sentimento de respeito, anseio pelo diálogo, conhecimento mútuo e troca de experiências pessoais. Desencadeia-se um processo puramente platônico. Um exercício das possibilidades sobre o eventual colóquio. Mas ambas estão muito ocupadas com os seus afazeres cotidianos (e mundanos). A aquisição de bens de consumo para a higiene do lar e a delícia de pequenas gulas.
Cada uma delas toma o seu próprio rumo, por entre as prateleiras.
Num determinado momento, conduzindo o carrinho displicentemente de um corredor a outro, Natália esbarra em Sandra. Assustada, Sandra deixa cair das mãos uma caixa de ovos, que despedaçam-se no chão, respingando clara e gema.
Natália pede desculpas pelo inconveniente, ajuda a limpar a calça jeans de Sandra e a convida para um café.
Neste mesmo momento, na Universidade, o Doutor Cassiano encontra-se solitário e triste em seu cubículo. Ele não sabe de onde vem Aquilo que o move em sua busca incansável pela superação em suas atividades, que de tão específicas, são proporcionalmente herméticas. O conhecimento de um homem só para si mesmo. E daí a sua frustração. Daí a sua insatisfação, daí a necessidade de comer o cu de Natalia com tanta fúria como que para manter-se vivo. Dr. Cassiano há muito não conversa descontraidamente. Sempre que se dirige a alguém é para expor o seu ponto de vista cientifico, solicitar auxilio em alguma atividade de extrema urgência para o Laboratório ou simplesmente para dar aulas para as paredes.
No momento, ele reza para que suas suspeitas em relação ao desastre com a fenda espaço-temporal sejam infundadas. Ele não dorme há duas noites. E mal se alimenta.
Ele espera que Natália não suspeite de nada.
“___Desculpe-me novamente, não tive a intenção. Vou pedir um cappucino para mim. O que você quer tomar?”
“___Não se preocupe. Está tudo bem. A calça já estava meia suja. Nossa !
Precisava tomar alguma coisa quente... esta fazendo muito frio! Qual é mesmo o seu nome?”
“___Natália. Sandra, certo ?”
“___Certo. Você não me é estranha. A gente já se conhece ?”
A garçonete se aproxima da mesa, anota os pedidos e sai.
“___Agora que você falou, também acho que já te vi em algum lugar.
Talvez seja no supermercado. Eu sempre compro lá.”
“___É a primeira vez que eu fui lá. O que você faz ?”
“___Eu sou doutora em lingüística. Curto bastante estudar essas línguas antigas que quase ninguém entende. E dou umas aulas de vez em quando. E você... ?”
“___Eu também sou doutora. Em física. Também estudo coisas que ninguém entende...”
Sandra pára no meio do pensamento e dá indícios de que não o terminará.
Natália aproveita a ocasião e, para restabelecer o fluxo da conversação, diz:
“___Deus não joga dados com o universo.”
“___O quê ?”
“___Einstein.”
Nesse instante, a garçonete reaparece com duas xícaras esfumaçantes.
Deposita-as na mesa e novamente volta ao balcão.
Ambas tomam um gole e, quando Sandra volta a falar, sua expressão está alterada. Sua voz está bem mais baixa e seu corpo reclina-se sobre a mesa em direção à sua companhia.
“___Eu me lembrei. O Projeto. Foi lá que eu te vi.”
A compreensão logo chega a Natalia também, e seu tom de voz também é baixo.
“___Tem razão. Mas a gente nunca se falou antes. Era tanto segredo que a gente suspeitava da própria sombra. E todo mundo vigiando todo mundo...”
“___Natália, alguma coisa saiu errado com aquele experimento. Alguma coisa que está... alterando a nossa realidade.”
Natália imediatamente lembra-se do urinol quadrúpede e do vibrador falante e estremece. Do outro lado do café-bar, a garçonete se aproxima de uma mesa plantando bananeira e anotando os pedidos com os pés. O homem a quem estava atendendo olha para o bloco nos pés da garçonete e, ao ver uma xícara de café e um pão com manteiga escritos de cabeça para baixo, começa a cantar em uma língua que jamais havia aprendido. A sua canção era a chave para o enigma da transformação de metal em ouro mas ninguém entendeu.
No dia seguinte, ao acordarem, Natália e Sandra jamais terão se encontrado.
Nesse mesmo dia seguinte, sentado a sua mesa, no cubículo, Dr. Cassiano digita ao computador os últimos parágrafos de seu artigo, definitivo e estarrecedor:
Os fenômenos naturais fluem em diversas dimensões. Usualmente, a análise do fluxo de um fenômeno natural dá-se a partir de três dimensões espaciais e uma dimensão temporal. As leis físicas descrevem determinados fluxos de fenômenos naturais a partir do estabelecimento de relações – equações diferenciais parciais – entre taxas de variação do fenômeno específico em relação a diferentes níveis dimensionais de evolução observáveis num determinado domínio. Na análise de um fenômeno natural específico são levantadas hipóteses – condições de contorno – que procuram desvincular o fenômeno de uma ação mais abrangente e definem os níveis dimensionais segundo os quais são estabelecidas as relações.
Os fenômenos naturais processam-se de forma a garantir a mínima variação do fluxo dentro do universo de possibilidades que satisfaz as equações.
Conseqüentemente, a solução de um problema desta natureza é o fluxo que apresenta a continuidade máxima.
Entende-se como nível dimensional de evolução de um fenômeno as ordens e as dimensões que caracterizam determinada derivada deste fluxo. Assim, a derivada de nível dimensional mais baixo é aquela capaz de reconstruir todas as demais derivadas que aparecem na equação diferencial, por integração exata, supondo-se conhecidas as constantes de integração.
Este conjunto formado pela derivada de nível dimensional mais baixo, juntamente com as constantes de integração, contém todas as informações das relações estabelecidas na análise de um fenômeno natural, onde os diversos níveis dimensionais apresentam-se na configuração de menor vínculo entre si.
Por sua vez, o próprio fluxo de um fenômeno natural contém toda a informação das relações estabelecidas na análise dele mesmo – sua identidade.
Porém, nesta situação, os níveis dimensionais apresentam-se numa configuração compacta.
Depois de digitado o texto, Dr. Cassiano sente-se infinitamente vazio.
Tudo corre exatamente como ele havia planejado. E naquele momento fica evidente qual a única forma de reverter O Processo Catastrófico e eliminar O Vírus. Essa era a sua pesquisa.
Serve a si mesmo uma xícara de café quente.
Degusta-a com prazer.
Depois tira a arma do fundo da gaveta e dispara seis tiros contra o céu da boca, encerrando a sua vida em todos os seis planos nos quais desdobrava a sua existência.
O funeral ocorreu num dia ensolarado e suas cinzas foram jogadas ao mar, de cima de um penhasco. Ventava muito. E há quem diga que nenhuma partícula sequer atingiu a superfície de água salgada. Sua alma nunca descansou.
O artigo foi publicado pelos seus colegas de trabalho. Teve grande repercussão nos meios acadêmicos, embora jamais tenha sido compreendido – por imaturidade, egoísmo, preguiça... i.e., a conjunção de todas as mazelas humanas.
Foi considerado mais como uma obra poética que propriamente cientifica, como de fato era.
Sandra passou a dedicar parte do seu tempo às corridas matinais pelo parque, à musculação e aos alongamentos. Despertou-se numa mulher virtuosa e desejada pelos homens. Fez uma discreta tatuagem na virilha. O rosto de Cristo, coroa de espinhos e o semblante acalentador com a língua de fora, em direção à vagina. Alguns disseram que ela veria os fogos arderem no Inferno. Bem, de Inferno ela entendia.
Desiludido, Fred rumou para a Inglaterra, onde cursou pós-graduação em direito internacional. Nunca teve certeza se era isso que realmente queria. Dizem que se tornou grande amigo do tal Príncipe Charles e, numa noite de bebedeira, ficou sabendo de toda a verdade sobre a morte de Lady Diana.
Que mundo louco é este onde umas poucas pessoas decidem sobre o destino de bilhões de almas?
Depois da morte do Dr. Cassiano, Natália nunca mais deu o cu.

Apêndice – Livro Negro d’O Atrito Entre as Esferas Celestes

Este estudo trata do levantamento dos coeficientes de atrito entre as esferas celestes. A introdução pressupõe a experiência simultânea de uma potente capacidade de concentração e sintonia com o ambiente em suas diversas escalas. Perceba os prótons colados aos nêutrons enquanto os elétrons estão a girar em órbitas probabilísticas. O universo está em constante transformação. No extremo oposto, as estrelas com os planetas a orbitar. Rotas de um contexto em expansão. Sinta agora a humanidade girar n’outro plano. O plano das idéias. Permitindo vislumbrar simultaneamente as diversas escalas de percepção do atrito entre as esferas. Neste contexto, define-se o céu como o domínio de todas escalas de esferas. Incluindo a própria humanidade, girando em planos ortogonais da consciência. O atrito – nos níveis sub-atômicos, planetários, das galáxias ou mesmo do pensamento – gera calor. É caracterizado como um processo exotérmico. A sua transformação de fase essencial é a sublimação. Esferas celestes em atrito necessariamente perdem energia. Irradiada em diferentes contextos. Simultaneamente. Caracterizam flashs da percepção celeste. Troca de informação. A energia dissipada através da sublimação das esferas celestes – inclusive das esferas animadas, como aquelas dos vegetais, dos animais e dos seres humanos – flui num outro contexto para o acúmulo da percepção. Reflexo disso é a lei termodinâmica do equilíbrio generalizada para uma reação química entre as esferas inanimadas e animadas. As primeiras acumulam energia gerada do atrito de esferas animadas. As segundas liberam energia, sublimada em flash celeste instantâneo, cuja contrapartida é a expansão da consciência. Logo, os dois extremos de esferas destes diversos contextos – a pura energia e a plena percepção – representam assíntotas intangíveis. Uma forma de atrito caracterizada pelo processo termodinamicamente instável ou etéreo. Entretanto, existe uma fenda na freqüência essencial de vibração celeste. Esta pode ser obtida pela potencialização do fio de uma faca de massa idêntica ao seu contrapeso no contexto da consciência das esferas animadas com as quais dá-se o atrito. A potencialização é teoricamente viável pelo movimento pendular da faca quântica. A tênue sintonia do amor sublimada na abertura do portal.

* Deve-se temer não quem lê muitos livros, mas quem lê muito um só livro São Tomás de Aquino

1 Comentário

andre albuquerque

Jorge: um primoroso trabalho; realmente, tema-se aquele que lê um só livro muitas vezes e não aquele que lê muitos .Forte abraço e parabéns pelo trabalho, no Portal e aquí.André