Uma manhã como todas as outras. Seis horas, o despertador; seis e quinze, banho; seis e meia as roupas mais a gravata. Exatamente às quinze para as sete o café de todos os dias e as frases automáticas, bom-dia, dormiu bem, querida? Sim, e você? Naturalmente. E acorde a menina, a escola, você sabe, a escola.
Na porta de casa o beijo, tão antigo quanto o casamento. As mãos dela ajeitando mecanicamente a gravata. Bom trabalho, querido.
Ele que se afasta em silêncio, dois segundos depois já instalado dentro do carro. Carro que ele não liga, afinal, já não há mais para onde ir, não ele, pelo menos.
Duas horas mais tarde a menina, o sorriso carregado de esperança: Chau, pai. A escola. Tenho que ir.
Ele acena debilmente, a mão descreve um semicírculo e depois volta novamente para a perna onde estivera imóvel. Um céu prometendo chuva e o rádio despejando roquenrrou com a urgência dos desesperados.
Lá pelo meio da tarde a mulher bate no vidro. O chefe ligou, vinte anos sem nem um atraso, o que é que aconteceu? Diz pra ele que eu não vou mais. Só isso? É o suficiente.
A noite cai em silêncio, uma viatura de polícia passa vagarosamente, para, um policial desce. Que faz aí parado? Nada, ele responde. Nada mesmo.
O policial esboça um sorriso, avança até a viatura, um minuto, e volta. Belo carro o seu, ele diz. Já não fazem mais desse. No interior do carro o homem olha para o policial com tédio, o rádio já mudo. Tem razão, soldado, tem razão. Um bom carro.
A noite repleta de estrelas, como há muito não via. Como há muito não se permitia ver, essa a verdade. O paradoxo: a prisão voluntária no carro agora lhe oferecia liberdades há muito esquecidas.
Peidar à vontade, por exemplo, sem culpas ou disfarces, afrouxar o nó da gravata dois dedos além do recomendável, deixar os sapatos a boa distância, sob o banco, folgar enfim os dedos. Tudo tão novo e fresco, tudo tão antigo ao mesmo tempo, a curiosa necessidade de abandonar o mundo para ter o mundo finalmente entre as mãos.
Três dias depois a esposa bate na janela, junto dela um homem. Querido este aqui é o João, você sabe, a menina não pode ficar assim, como é que vai explicar na escola? Um novo pai, porque todas as meninas devem ter um pai, e todas as mulheres, inclusive eu, precisam de um marido. Alguém que além do amor colabore também com a conta de luz. O João está disposto, já conversamos a respeito.
Do banco do carro ele observou os três entrando na casa, a filha que fora sua no colo do novo pai, a mulher enroscada nele como uma cobra no cio. Claro, ele pensou, claro que sim, as coisas devem seguir o seu curso, quanto mais cedo melhor. Agora sim a liberdade plena, sem as amarras da família, ó, que vontade de se fundir ao banco e virar nada, felicidade às vezes é isso, virar nada, nada, um pneu furado sem importância, a felicidade às vezes é isso: o João que se foda agora no meu lugar!
Livre enfim, com a possibilidade de fugir para qualquer canto do mundo — mas era tarde, muito tarde. Agora nada mais importa, nenhum lugar, ninguém. Botar os pés fora do carro implica em aceitar novamente as regras que recusou, voltar a dizer as mesmas frases ocas de outrora, sim senhor e pois não, engolir outra vez os sapos intragáveis de uma humanidade que se diz superior mas de superior mesmo só tem a ignorância. Aqui, ó! O automóvel me oferece conforto, pensou, isolamento. Aqui eu sou meu rei, meu deus. Meu dono, enfim. Que o mundo exploda, se consuma em guerras, que o inferno ganhe as ruas com suas hostes bestiais, o caos, que se faça o caos — desde que me deixem em paz e aqui dentro, neste meu castelo de quatro rodas com bancos de couro.
Assim ficou, portanto, muitos e muitos anos, o seu corpo agora coberto de musgo, de tal forma que quem via de fora enxergava apenas o automóvel com um borrão verde dentro, imóvel, um borrão viscoso mas ainda vivo em algum lugar.
Foi a menina, já então uma mulher, quem chamou um dia a televisão para conferir. Uma bola verde dentro do carro, onde é que já se viu! E vieram as equipes locais e do exterior, jornalistas de tudo quanto é lugar, todos com câmeras apontadas para o carro, unicamente para o carro, um pouco enferrujado mas ainda o carro, imóvel havia anos — mas ainda o carro que todos aprenderam a admirar. Um absurdo todo aquele verde, falaram, talvez uma doença do metal, algo assim, quem sabe. As imagens correndo de país em país, as páginas dos jornais estampando a consternação já mundial, o carro, ó!, pobrezinho.
Daí que veio um bombeiro, prático, abriu a porta do carro com a mesma delicadeza das carícias, e com um movimento vigoroso, enérgico, arrancou do banco dianteiro a massa verde e disforme. Os gritos e aplausos, a TV documentando ao vivo, os jornalistas frenéticos transmitindo em tempo real para as redações.
No dia seguinte o mundo soube que o automóvel estava a salvo, e a sensação de alívio se fez estampar de norte a sul do planeta. Ao lado do carro, bem atrás do pneu dianteiro, o musgo enfim definhando, em silêncio e a sós, esquecido por Deus e pelos homens.
3 comentários
Muito bom! Adorei ler, embora tenha ficado com a respiração presa quase todo o tempo. Parabéns, meu amigo!
Beijo da Sonia Regina
Excelente , Bartleby num Corcel cor de mel.André
Agradeço a vcs pelos comentários. TKS mesmo!
Postar um comentário