segunda-feira, 5 de março de 2012

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Onde pulsa o sol - Diálogo Poético [Jorge Vicente e Sonia Regina]


"Escrevo-te enquanto algo resvala, acaricia, foge
e eu procuro tocar-te com as sílabas do repouso
como se tocasse o vento ou só um pássaro ou uma folha."
Antonio Ramos Rosa





1.

carinhosamente respondo-te de uma calmaria,
mas não sei do que resvale ou fuja

digo-te do afago em tuas sílabas do repouso,
ternura a me acolher a letra e a me receber,
folha ou pássaro

escreves em minha pele, já vento,
sopram os teu dedos no meu corpo,
em meus lábios desenhas o sentido

da felicidade

no movimento do fogo a paciência
do teu amor, em ondulação suave,
toca o fundo aberto da palavra

que cintila, branca,
onde pulsa o sol.


sonia regina


2.

onde pulsa o sol
é onde pulsa o anjo
e o demónio - a luz
solar, a luz branca,
o gelo dos sentidos
e do afago.

jorge vicente


3.

onde nada se escuta
senão o silenciar da dúvida
e sua consolidação,

que castiga

não tanto o fado, cantiga
dos ventos
que já não pulsam

quanto a decadência
dos tempos


sonia regina


4.

os tempos decantam-se
e ouvem o que está por detrás

eu fico: apenas a dúvida de
como calar e fugir e ouvir
a sete pés o amor que
encosto nos dedos
que escrevo.

jorge vicente


5.

atrás de uma xícara vazia
haverá um corpo gelado
se ficas sobre a madeira
sem lume

no calor da tua alegria eu resisto
quando, na rua, a luz se apaga
e no jornal já não se lê senão
do crepúsculo dos mistérios


sonia regina


6.

amanhecem os mistérios
e a pítia já se encanta com
os seus súbditos, o seu olho
terceiro que toca e é tocado:

sei que foi nesse momento
que nasceu o verso primeiro,
o restolhar dos mistérios e de
todos os signos das palavras.

jorge vicente


7.

o humano é exilado de si,
não há alvorada do enigma

é à noite que eros impede
o esquecimento, movimenta
os sentidos para o coração

nutre a alma do que é da sua natureza


sonia regina


8.

será que o velho amante,
deus da morte e do silêncio,
thanatos ainda me persegue?

pergunto-te, eros, onde vai
a estrada da aldeia.
vejo pequenas campas ao longo
da estrada e nenhuma bomba
que surja do emaranhado das
árvores. pergunto-te, eros, em
que terra surges, com que tecido
te alimentas, se das heras que
alimentam a casa se dos repasto
dos bichos e das térmitas que ainda
ouço à noite, quando escrevo um poema
aos mortos.

pergunto-te, eros, com que dinheiro
a casa foi reconstruída. ainda ontem
estive em dubrovnik e só vejo turistas
a encherem os bolsos. também eu vivo
no adriático e peço que os deuses
sejam inclementes.

jorge vicente


9.

enquanto te exilares de ti é impossível
verificar se quem te persegue não és tu
ou o que, de ti, depositas no dinheiro
com que te compram os fragmentos:
és menos clemente que todos os deuses

atenta à tua parte deliberada,
mergulha em teus subterrâneos,

a estrada da aldeia te levará aos rastros
de ti projetados nas árvores do caminho.
eu somente desvelo um pouco da história
desse teu `eu' escrito na superfície estética
do poema.

alimento-me do teu timbre,
é nele que colocas o teu olhar interativo,
líquido e movente.

quando em vida escreves aos mortos,
thanatos supera-me e vai ao teu encalço
através dos rastros de cunho estético.


sonia regina


10.

thanatos sempre me supera. e ainda bem.
porque o dom da vida é sempre igual ao
dom da morte. o dom de abandonar. de
estar silente. de pernoitar no que as ervas
sobram. e no que os caminhos desconhecem.

nunca me exilarei de mim. a aldeia estará sempre
comigo, mesmo que a árvore seja o mais pequeno
baloiço de brincar que vejo entre os prédios.

jorge vicente


11.

emocionados caminhamos para o amor
ou o horror, ladeados pelo desejo
- o de buscar e o de ir em direção contrária;
eros preenche com vida nova os hiatos
que thanatos causa incessantemente.
a mente - capturada pela emoção estética -
resta acima do desejo e do ódio.

não expulsa o subjetivo, que não te perderás de ti
e não haverá solidão. seja a aldeia vista ou imaginada,
as árvores balançarão ao vento que nada mais separa
porque a essência terá retomado o corpo.


sonia regina


12.

a essência retoma sempre o corpo
porque eros assim o quer.
ou será hades, o deus das profundezas
dos vácuos de pedra, dos lugares sertanejos
onde o interior é apenas ausência de mar.

ouço um bandolim bem debaixo das ruínas
da cidade. não há subterrênos mais fundos
do que aquilo que ouvimos e amamos sempre
mais.

será eros. será hades. será rei édipo retornando
do exílio em colono? nunca há um exílio tão belo
onde aquele em que finalmente se vê.

jorge vicente


13.

os olhos se fecham: não querem ser vistos.
é esse o exílio do olhar que, no leito, se deita
com a ausência do toque - não há morte ou
incesto quando a pele espelha as sombras

para não queimar a retina das habitações poéticas,
o enredo é sem poesia e de uma narrativa oblíqua:
é golpeado o argumento na memória viva de cenas
domésticas e voa em papel para debaixo da cama

o ilícito e o iníquo transmutam-se no guerreiro
tenaz e heróico, lideram a transparência, choram
o atrito das pedras escuras que não fazem fogo


sonia regina


14.

vivo por entre as pedras. construo casas e habitações.
moradas. mansões. templos do saber espiritual. está
tudo dentro de mim. as casas e as mansões. nada está
fora. nada está debaixo. podes ver. podes sentir. podes
tocar com a pele e com o sexo. há quem diga que a religião
só se evoca se saltarmos três vezes por cima de uma
árvore dourada. sabes, aquelas árvores onde o sol bate
cada vez que nos deitamos. dizem que foi cupido que a
acordou. e que cismou de deitar o sol acima dela.

jorge vicente


15.

tu me emprestaste o olhar e eu as vi, pedras e mansões.
mas toquei num cenário espinhoso, em preto e branco.
não havia festa na cor nem o sol era bem vindo, sucumbia
em agonia o dourado da árvore

ainda tentei saltá-la, mas já não havia religião para a sede,
embora eu a acudisse - ainda que sem água - ao anunciar
o cinza da nuvem, quando acordava

entretanto, saltitei. meu passo estreitou-se, marcou o tempo
e eu o finquei na terra, esperançada. cupido voou sobre ela,
alagou meu sorriso e coloriu minha casa e árvore com o sol.

ah, amigo, hoje meus olhos gotejam contigo a anunciação.


sonia regina


16.

gabriel está comigo. sempre está comigo,
desde o dia em que meditei pela última vez.
disse-me que era o anjo da anunciação,
mas que a mim não me anunciava coisa nenhuma
pois tudo já fora inventado pela boca do poeta.

disse-me que conhecera tirésias quando ainda
tinha asas pequeninas e mamava na pomba do
céu superior. sabes, disse ele, no céu os animais
são como os homens: têm alma e filosofia e sabem
escrever e ler como ninguém. foi a pomba, disse-me
ele, que criou as primeiras letras, os primeiros símbolos
matemáticos. ele ainda era pequenino, mas as asas
já eram enormes e levantavam os mares e os ventos
e criaram os primeiros continentes.

sabes, disse ele, tenho saudades desses primeiros tempos.

jorge vicente


17.

também eu tenho saudades de sentir o pulsar do sol.
vi muitos ombros amparando-se em corpos sem braços
que meditavam. sem qualquer movimento o pensamento
aquietava-se entre as imagens; livros e páginas escritos
a lápis foram apagados por atos ensandecidos

entontecia o gelar do sangue no corpo à espera do prenúncio
do rito, um gosto acre e doce prendia as vozes

gabriel, arcanjo da cura, imprimia ritmo aos vôos sem asas

a liberdade roçou aquelas faces com a essência animal;
na transfiguração da mata penetrou-se o vazio, sem medo
ou pudor

nenhum dizer senão o de tirésias desagradou zeus, depois
do conhecimento do feminino e do masculino.


sonia regina


18.

todos os conhecimentos desagradam o deus
pelo menos aquele dos olhos largos, que vêem
tudo, que sentem tudo, que ouvem o que não
podem ouvir

pois nem tudo pode ser visto
nem pode tudo ser sentido
nem tudo tem o cheiro que o arcanjo
ou o deus quer,

a começar nas folhas
quando chove, o cheiro da terra
molhada, da terra que não é terra
senão chuva misturada no acre da semente.
o deus, aquele que vê tudo, apenas vê
uma imensa bola gigante com animais e gente dentro.

gabriel, o anjo das asas brancas, chora
e diz-lhe que o mundo é sem porquê.

jorge vicente


19.

deuses gerem os mistérios do princípio,
não o caminho para a individuação;
a criação das nuvens e da chuva estanca
antes do usufruto, o que comove o brilho
angelical

em horas ressecadas o sacro não mergulha
no solo para ser fertilizado; não vê a relva
que recobre o barro num abraço vermelho

a terra exubera intensa fertilidade em linguagem
varrida de palavras, há graça nos sem porquê:
talvez o ar por demais corrompido traga
um eros que deflore círculos viciosos


sonia regina


20.

pergunto-te, eros, se achas o mundo corrupto.
se achas o amor apenas uma palavra sem sentido
ou a exaltação de toda a tua existência.
talvez, meu amigo, descubras que o mundo é
sempre sem porquê, sem respostas
e que o amor é sempre o mesmo amor
na corola do flor

e na mulher que descobre o sexo pela primeira
vez. talvez perguntes, eros, se o poema diz
isso tudo: não diz. os homens dizem.
e é o homem que escreve sempre o chão.

jorge vicente


21.

`não existo na simetria, disse-me eros, `no amor
não há forma ou vontade corruptível', `dele vêm
a natureza e o heróico.'

falou-me do deslumbre das paixões exaltadas
com o lume, quando a luz não surpreende;
do poema que escuta os vãos aproximando
a intimidade do estranhamento; da negligência
flutuante que torna a orientação um descaminho.

fascina, essa leitura que provoca cometimentos:
o chão deixa de ser referência, o céu propõe
estabilidade, através dos mitos e sonhos o íntimo
encanta-se, fazendo a escritura dos contrários.

sem ter a quem vencer, a vida se iguala à morte
que provoca renascimento.


sonia regina


22.

e tu renasces?

renasces nos silêncios do verso, nas entrelinhas que o corpo tece
entre as unhas? eu sou a pele, a pele frágil, mas intensa,
murmurando águas e cabelos e toques entre os dedos
a memória frágil da mais bela manhã do mundo.

jorge vicente


23.

só é provocado quem acaba.

eu nunca terminei, talvez nunca tenha começado. nem no silêncio
do meu verso houve entrelinhas. sem corpo enfrentei o todo relativo
e o absoluto avesso do nada.

numa época inábil em cinzas não ocupei senão umidades ligeiras.
fênix era um mito, assim como a chuva redentora que não vinha
das águas que murmuravam na pele dos que tinham memória

atrás da minha letra narciso dançava com o espelho em busca de si
e eu era a cantiga pressentida que não acalmava, atiçava ou acolhia.


sonia regina



Imagem: Decohouse®

OBS:

1-  Diálogo Poético realizado na lista de criação e discussão literária Encontro de Escritas (Portugal)
    Jorge Vicente é residente de Letras et cetera
    Sonia Regina é fundadora e editora de Letras et cetera

2- O poema 1, Onde pulsa o sol, foi publicado originalmente aqui: http://nanquin.blogspot.com/2011/12/onde-pulsa-o-sol-sonia-regina.html

5 comentários

jorge vicente

Minha querida,

este foi mesmo dos nossos melhores diálogos, não foi?

Muitos beijos
Jorge

sonia regina

Sim, foi sim, embora existam outros bastante bons, também.

É legal relê-los. E compartilhá-los.

Não é nada simples ou fácil este trabalho, talvez por isso tão pouco realizado.

Beijos, muitos

jorge vicente

Talvez porque este trabalho implique um pouco o entrar na vivência do Outro, na escrita do Outro, naquilo que o Outro sente. E, quando é bem feito, entra-se em perfeita sintonia.

Como nós.

Mais beijos!
Jorge

sonia regina

Concordo.

Penso que se enquadra em intertextualidade. Destaco um fragmento do que li:

"Quem escreve não escreve no vazio, pois um texto não surge do nada. Nasce de/em outro(s) texto(s). Pode-se dizer que escrever é a habilidade de aproveitar criticamente, criativamente outros materiais interdiscursivos, outros textos. É por isso que quem lê (de forma inteligente, conforme expusemos no capítulo "Como desenvolver a competência textual") está em situaçõa privilegiada para escrever, uma vez que se apropria, mediante a leitura, de idéias e de recursos de expressão."

O texto completo está em http://www.pucrs.br/gpt/intertextualidade.php

Beijos
da Sonia

jorge vicente

Valeu, querida amiga!

Vou ler o texto!

Mais beijos!
Jorge