terça-feira, 15 de maio de 2012

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O Beco

            Olhou por sobre o ombro. Não havia ninguém, nenhum rapaz de gorro preto. Abriu a porta da casa, cuidadoso, olhando para os lados. Fechou-a com duas voltas de chave e passou a tranca. Sentia uma aflição, um mal estar! Seria fome? Na geladeira, leite, resto de um bolo, uma caneca de sopa. Esquentou-a e foi sorvê-la frente a TV. O noticiário, sempre o mesmo: assaltos, sequestros, a costumeira corrupção. Desligou a TV. Cochilou.

            Acordou sobressaltado. O vento gemia baixinho através da janela entreaberta. Estranho! Sempre a fechava, trancava tudo! Deu-se conta que alguém poderia ter invadido a casa enquanto ele dormia. A idéia foi crescendo... crescendo... e com ela, a velha sensação de impotência, aquele nó nas entranhas, a pressão crescente no peito, a falta de ar... Sentou-se. Esperou um minuto, dois minutos... dez minutos. Tudo tranquilo, sossegado. Mais calmo, foi fechar a janela e estremeceu de cima a baixo. Seus olhos esbugalhados viram o rapaz de gorro preto cruzar a janela da casa frente a sua. Não era possível... aquilo devia ser uma fantasia da sua imaginação. A casa estava vazia. Os vizinhos viajaram. Ele os tinha visto sair carregando malas há três dias. Fechou os olhos, desvairado. Quando os abriu, a visão tinha desaparecido. A janela estava fechada, a casa às escuras.
 A noite ia avançando, ocupando todo o espaço do Beco. Criou coragem. Afastou a cortina devagar e correu os olhos pela casa da frente, e tudo lhe pareceu perfeitamente normal. Súbito, a mulher surgiu da penumbra e abriu o portão.  Viu-a  retornar com algumas sacolas. Continuou à espreita e minutos depois, viu o casal sair. Era ele!! O rapaz do gorro preto!! Soltou rapidamente a cortina, mas sentiu o olhar aguçado dos dois cravado na janela entreaberta. Teriam-no visto? O horror tomou conta dele. Aqueles dois eram capazes de qualquer coisa. Ousados, temerários, mantinham um cativeiro em pleno centro da cidade e a vítima estaria amordaçada, dopada e certamente comeria sob a mira de um revólver. E ele, a testemunha, a prova, não devia, não podia ser visto. Tinha de tornar-se invisível, despercebido. A escuridão era total, tateou às cegas, até o quarto. Deitou-se vestido e apertou os olhos muito, muito. Não sabe se dormiu, ficou perdido na escuridão extensa, interminável.
            Clareava o dia. Mexeu-se na cama, as idéias embaralhadas. Sentia-se prisioneiro de si mesmo. Não tinha amarras nem as mãos atadas, mas sentia-se petrificado, preso como nunca. Não podia sair, fazer compras, nem pegar o jornal. Era o que sempre fazia no sábado. Estava faminto! O leite e o bolo não aplacaram o estômago doído, ansioso.
O dia arrastava-se. Tinha que fazer alguma coisa. Talvez pudesse apanhar os jornais, entreabrindo a porta ligeiramente. Não... a falta dos jornais denotaria a presença dele na casa. Resolveu passar uma tranca também na janela e a cobriu com uma pesada manta preta; bloquearia o brilho cambiante da televisão. E ali ficou perdido na escuridão, no mais completo silêncio, impassível, distraído, afundado na poltrona. As imagens se sobrepuseram num vai e vem hipnótico e subitamente se apagaram, e por um longo tempo prevaleceu o nada. Depois se aclarou. A fome, o desânimo o torturaram. Estava mesmo preso no Beco e, em desespero, resolveu que sairia, voltaria a comer, a viver. E então a campainha tocou... apenas um toque leve, mas foi como um tiro de canhão. Pulou da poltrona e olhou pelo olho mágico. Desvairado, viu apenas um vulto de costas com um gorro preto na cabeça. Estremeceu... sentiu o chão abrir-se aos seus pés. O ar lhe faltou. Desabou na poltrona, abatido, prostrado. De nada adiantou tanta precaução. Estava aniquilado. Uma dor aguda foi crescendo... crescendo...
 Obrigou-se a deitar e fechar os olhos. O tempo parou. Os sentidos esmaeceram, apagaram-se formas, sons, cheiros... Somente persistiam e cresciam as vibrações que lhe martelavam os tímpanos, entranhavam-se nas veias, aceleravam loucamente as batidas do coração que parecia a ponto de explodir.
Alguns sons quebraram o silêncio: frear de carros e portas batendo, arrastar de passos, mais e mais perto, luz e vozes encheram o quarto. Um vulto escuro debruçou-se sobre ele, um outro branco... um paramédico?... um policial?... E mais um outro de gorro preto, mas... sim... seu vizinho! Tão familiar!
 Graças a Deus, vinham acudi-lo.
             Mas era tarde demais.



Texto bem resumido do conto “O Beco”  - 5° lugar -  concurso Ed. Guemanisse

1 Comentário

Jorge Xerxes

Hilda,

Um Ótimo Conto!

Muito boas as descrições das sensações.

Um Beijo, Jorge