Olhou por sobre o ombro. Não havia ninguém,
nenhum rapaz de gorro preto. Abriu a porta da casa, cuidadoso, olhando para os
lados. Fechou-a com duas voltas de chave e passou a tranca. Sentia uma aflição,
um mal estar! Seria fome? Na geladeira, leite, resto de um bolo, uma caneca de
sopa. Esquentou-a e foi sorvê-la frente a TV. O noticiário, sempre o mesmo: assaltos,
sequestros, a costumeira corrupção. Desligou a TV. Cochilou.
terça-feira, 15 de maio de 2012
1
O Beco
autor(a): Hilda Plácido
Acordou sobressaltado. O vento gemia
baixinho através da janela entreaberta. Estranho! Sempre a fechava, trancava
tudo! Deu-se conta que alguém poderia ter invadido a casa enquanto ele dormia.
A idéia foi crescendo... crescendo... e com ela, a velha sensação de
impotência, aquele nó nas entranhas, a pressão crescente no peito, a falta de
ar... Sentou-se. Esperou um minuto, dois minutos... dez minutos. Tudo tranquilo,
sossegado. Mais calmo, foi fechar a janela e estremeceu de cima a baixo. Seus
olhos esbugalhados viram o rapaz de gorro preto cruzar a janela da casa frente
a sua. Não era possível... aquilo devia ser uma fantasia da sua imaginação. A
casa estava vazia. Os vizinhos viajaram. Ele os tinha visto sair carregando
malas há três dias. Fechou os olhos, desvairado. Quando os abriu, a visão tinha
desaparecido. A janela estava fechada, a casa às escuras.
A noite ia avançando, ocupando todo o espaço
do Beco. Criou coragem. Afastou a cortina devagar e correu os olhos pela casa
da frente, e tudo lhe pareceu perfeitamente normal. Súbito, a mulher surgiu da
penumbra e abriu o portão. Viu-a retornar com algumas sacolas. Continuou à espreita
e minutos depois, viu o casal sair. Era ele!! O rapaz do gorro preto!! Soltou
rapidamente a cortina, mas sentiu o olhar aguçado dos dois cravado na janela
entreaberta. Teriam-no visto? O horror tomou conta dele. Aqueles dois eram capazes
de qualquer coisa. Ousados, temerários, mantinham um cativeiro em pleno centro
da cidade e a vítima estaria amordaçada, dopada e certamente comeria sob a mira
de um revólver. E ele, a testemunha, a prova, não devia, não podia ser visto.
Tinha de tornar-se invisível, despercebido. A escuridão era total, tateou às
cegas, até o quarto. Deitou-se vestido e apertou os olhos muito, muito. Não
sabe se dormiu, ficou perdido na escuridão extensa, interminável.
Clareava o dia. Mexeu-se na cama,
as idéias embaralhadas. Sentia-se prisioneiro de si mesmo. Não tinha amarras
nem as mãos atadas, mas sentia-se petrificado, preso como nunca. Não podia
sair, fazer compras, nem pegar o jornal. Era o que sempre fazia no sábado.
Estava faminto! O leite e o bolo não aplacaram o estômago doído, ansioso.
O dia
arrastava-se. Tinha que fazer alguma coisa. Talvez pudesse apanhar os jornais,
entreabrindo a porta ligeiramente. Não... a falta dos jornais denotaria a
presença dele na casa. Resolveu passar uma tranca também na janela e a cobriu
com uma pesada manta preta; bloquearia o brilho cambiante da televisão. E ali
ficou perdido na escuridão, no mais completo silêncio, impassível, distraído,
afundado na poltrona. As imagens se sobrepuseram num vai e vem hipnótico e
subitamente se apagaram, e por um longo tempo prevaleceu o nada. Depois se
aclarou. A fome, o desânimo o torturaram. Estava mesmo preso no Beco e, em
desespero, resolveu que sairia, voltaria a comer, a viver. E então a campainha
tocou... apenas um toque leve, mas foi como um tiro de canhão. Pulou da
poltrona e olhou pelo olho mágico. Desvairado, viu apenas um vulto de costas
com um gorro preto na cabeça. Estremeceu... sentiu o chão abrir-se aos seus
pés. O ar lhe faltou. Desabou na poltrona, abatido, prostrado. De nada adiantou
tanta precaução. Estava aniquilado. Uma dor aguda foi crescendo... crescendo...
Obrigou-se a deitar e fechar os olhos. O tempo
parou. Os sentidos esmaeceram, apagaram-se formas, sons, cheiros... Somente
persistiam e cresciam as vibrações que lhe martelavam os tímpanos,
entranhavam-se nas veias, aceleravam loucamente as batidas do coração que
parecia a ponto de explodir.
Alguns sons
quebraram o silêncio: frear de carros e portas batendo, arrastar de passos,
mais e mais perto, luz e vozes encheram o quarto. Um vulto escuro debruçou-se
sobre ele, um outro branco... um paramédico?... um policial?... E mais um outro
de gorro preto, mas... sim... seu vizinho! Tão familiar!
Graças a Deus, vinham acudi-lo.
Mas era tarde demais.
Texto bem resumido do conto “O
Beco” - 5° lugar - concurso Ed. Guemanisse
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1 Comentário
Hilda,
Um Ótimo Conto!
Muito boas as descrições das sensações.
Um Beijo, Jorge
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