O sucesso que alcançaram livros como o Código da Vinci e outras obras do género não nos pode deixar indiferente. À primeira vista, poderíamos classificar obras como Eu, o Engraxador de sapatos de Hitler ou O cozinheiro de De Gaulle como romances históricos. No entanto, se evocarmos as obras pioneiras deste género literário, podemos recordar que o ambiente de toda uma época está lá; que, inclusive, as personagens reais estão lá, mas que a trama se laça e se desenlaça nas margens desses acontecimentos históricos, de um modo geral, respeitando-os tal como acreditamos que tenham ocorrido (e invocamos aqui a história nacional, mundial, qualquer que ela seja).
A grande percursora deste filão literário é, em nossa opinião, Marguerite Yourcenar com o admirável livro Memórias de Adriano. Na obra, a autora escreve uma extensa memória autobiográfica do imperador Adriano, utilizando para isso a primeira pessoa - a autora usurpa, assim, a consciência da personagem real. Yourcenar consegue um texto em que o modo de pensar e de sentir romano é ficcionado de modo admirável. Apesar de abrir caminho a uma série de romances que violentam personagens reais, a autora tenta respeitar ao máximo acontecimentos e sentires tal como acreditamos que eles tenham acontecido.
O novo sub-tipo de romance histórico possibilitado pelas Memórias procede de modo bem diferente: regressa ao passado, recria ambientes mas apropria-se de personagens reais e de acontecimentos, apenas para os manipular romanescamente. Ao agir deste modo, o romance invade muitos espaços que não são seus. Em primeiro lugar, invade o espaço da ciência histórica ao propor versões alternativas dos acontecimentos e das motivações de personagens reais (ou seja: mexe com o nosso próprio imaginário e os nossos mitos enquanto cultura). Em segundo lugar, aproveita-se de uma curiosidade mórbida dos públicos actuais de saber detalhes biográficos de homens e mulheres famosos. Neste sentido, poderíamos estar perante uma deslocalização da actividade dos papparazzi que, em vez de perseguir Diana ou Beckham, perder-se-iam em temerárias cavalgadas pelos mais diversos séculos.
Tentemos então esmiuçar o primeiro dos pontos acima formulados. O romance, ao modificar a substância histórica, mexe com mitos colectivos, com o imaginário, e isso pode ser um dos motivos para o seu sucesso. Existe uma evidente curiosidade em se saber uma outra verdade, numa história que julgávamos conhecer em todos os pormenores – como se estivéssemos cansados das histórias basilares da nossa cultura e de nós próprios não serem recontadas e reinventadas. Falamos aqui da necessidade psicológica de narrativas e de como elas podem fazer reviver acontecimentos e pessoas tornado-os, de algum modo, mais próximos.
Invadir a história é um risco enorme. Existe o perigo da perda de distância entre a realidade e o que é a substância ficcionada. Muitos leitores perder-se-ão imediatamente, pois, ao não conhecer a realidade histórica, tomarão como verdade a realidade ficcionada. De qualquer modo, é este jogo que seduz: não se sabe onde começa a realidade e começa a ficção; o que é autor e o que é o outro ficcionado (mas que, como ser real que foi, teve também a sua voz que ainda se poderá ouvir).
Entramos, agora, no segundo ponto, aquele que chama atenção para o facto do romance histórico actual desvendar uma suposta intimidade de personagens reais. Muitos autores na área das ciências sociais chamam a atenção para a emergência do interesse pela subjectividade do outro, interesse esse que assumiria diversas formas: o sucesso crescente da escrita autobiográfica e que desvela factos e subjectividades (p. e. eu, a secretária e Nixon vou falar do modo como via o presidente); o privilegiar das entrevistas como forma de conhecer o outro, quase como se constituíssem um critério de verdade.
O tipo de romance histórico, sobre o qual reflectimos, actua no interior deste dispositivo. Usa um complexo jogo de espelhos. Mune-se de factos históricos, de verdades passadas, mas plasma-as numa suposta subjectividade histórica de um personagem para as deturpar e suscitar interesse. Poderíamos mesmo referir-nos a uma verdade narrativa que usurpa a realidade, confundindo o leitor.
Se falámos acima em papparazzi não o fizemos de forma inocente. De facto, esta figura é uma das forças motrizes dos mecanismos do espectáculo nas nossas sociedades. Ao apropriar-se da subjectividade, directa ou indirectamente, de figuras mundialmente famosas, o romance tenta reclamar, também ele, esse quinhão de espectáculo que é o propulsor fundamental das nossas comunidades. A procura do insólito, em figuras tutelares da história da humanidade obedece à crença contemporânea de que tudo vale fazer para se conseguir suscitar interesse.
Por todos estes motivos, a forma como se estrutura este sub-tipo de romance histórico aproxima-se da linguagem mediática actual. Recordemos, por exemplo, os reality shows, onde se simulam relações espontâneas em frente de câmaras. Não se sabe o que é ficcionado, o que é realmente espontâneo e o que é montagem das produções. Há uma deslocação imprevisível entre o que é do domínio da verdade e o que é do domínio da narrativa televisiva. Poderá ser esta uma outra explicação para se compreender o sucesso deste tipo de trabalho? Como se as fronteiras do mundo exterior estivessem a ser desrealizadas?
O romance histórico participa actualmente num movimento maior, que o transcende, e em que não deixa de ser uma voz activa: a desrealização do real ou, se quiserem, a desvitalização do mundo. Este movimento actua através da virtualização (frequentemente informática) de todos os pedaços de realidade: tudo pode ser como quisermos; como imaginamos; como desejamos. As grandes histórias da humanidade, como narrativas que são, sofrem, com as actuais formas de comunicação, um processo de re-narração que as afasta do que pode ser tomado como a realidade.
O romance histórico é, apenas, uma outra forma de retirar verdade ao nosso passado – como se no final de contas nada pudesse obstar à imaginação e nada, no exterior, pudesse obstaculizar o eu. É este outro, o real, o segredo último do código Da Vinci.
Originalmente publicado em:
A Página de Educação, Abril de 2005
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