A solução de muito problema complexo
requer um árduo caminho preparatório, determinado e pré-estabelecido pelas
intrincadas sendas da razão. Outros parecem dar-se de maneira diferenciada,
mais a semelhança da ruptura com uma antiga percepção ou realidade inerte: é
como o fruto de uma mangueira, a desprender-se pelo próprio peso, no instante
devido, para a sua providencial serventia como alimento aos pássaros.
Antonio olhou para o alto, depois para
baixo, e prosseguiu caminhando pelo calçamento à margem da rua estreita de
paralelepípedos. Duas quadras apenas separavam o escritório de seu destino. Um
procedimento aparentemente banal: caminhar despretensiosamente pela calçada
àquela hora da manhã, com o sol incidindo a setenta graus em relação ao corpo franzino,
disposto verticalmente. Sombra. Mas tratava-se antes de um evento cíclico, porém
de periodicidade variável. E talvez fosse essa inconstância (ou variabilidade
temporal) que iludisse Antonio quanto à percepção de relevância naquilo que o
movia.
Chegando aos Correios, ele cumprimentou o
atendente que já lhe era familiar. Olhou para o alto, depois para baixo. O
funcionário fingiu não atentar ao cacoete. E Antonio relevou ante a curiosidade
recalcada do atendente. Este tratou do despacho de rotina: as verificações do
destinatário, remetente, peso e custo. Antonio pagou, olhou para o alto, depois
para baixo. Então o atendente, de ar mexeriqueiro e forjando certa intimidade,
questionou-o com relação ao conteúdo de tais correspondências.
Foi daí que Antonio lhe disse sobre a
existência daqueles cadernos, cujas inscrições em signos evocavam aos descaminhos
erráticos da civilização. A panfletagem subversiva a ordem estabelecida pela
rotina e pelo conformismo. Problemas irresolutos; tencionavam romper a circularidade
cristalina das horas puras (porém vazias) dos dias. Eram esses os tais cadernos,
enviados aos destinatários, nem sempre conhecidos pessoalmente pelo remetente.
Mas cada sectário comungava, a sua maneira, daquele levante, apresentando diferentes
graus de afinidade ao movimento. Os signos viriam (ou não) a ser desvelados um
dia, profetizou. Como a gestação do cérebro em duas metades duma semente, tendo
por objetivo a luminescência quando propriamente ligado ao coração.
Antonio olhou para o alto, depois para
baixo. Então prosseguiu: maldita a hora que fui lhe dizer isso! Era como se,
num átimo, ele houvesse sido impelido através de um duto conectando um lado a
outro. Condensação de nuvem amorfa das ideias precipitando súbita a compreensão.
Cuidado, isso pode ser contagioso! Ele disse ao atendente.
* * *
Ele chegou em casa a noite, depois de
mais um dia como outro qualquer. Beijou a mulher na boca e também a fronte de
cada uma de suas duas filhas. Teria sido mais do mesmo não fosse um sutil acréscimo
na intensidade dos gestos. A mulher lhe indagou: Como foi o seu dia, querido?
Tudo na mesma lá nos Correios.
Um remoinho girava em sua cabeça; e ele
olhou para o alto, depois para baixo.
3 comentários
Jorge,
Sensacional! Ideias são realmente contagiosas (ou contagiantes) e o seu ótimo texto também.
Abraço,
Márcio.
Uma fantástica realidade inserida no prosaico , interpretando o mundo; os cadernos , Pedra da Esmeralda (?), cujo detentor parece querer dizer-nos que o macrocosmo repete o microcosmo,através da linguagem corporal sui generis.Enfim,uma narrativa que faz pensar e refletir,sobre o pensamento e a reflexão; um autentico Jorge Xerses.Parabéns.
Caros Marcio e André,
Agradeço sinceramente pela Atenção e pelos Vossos Comentários.
É isso o que nos motiva a prosseguir escrevendo...
Abraços, Jorge
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