quinta-feira, 29 de novembro de 2012

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Contato

A solução de muito problema complexo requer um árduo caminho preparatório, determinado e pré-estabelecido pelas intrincadas sendas da razão. Outros parecem dar-se de maneira diferenciada, mais a semelhança da ruptura com uma antiga percepção ou realidade inerte: é como o fruto de uma mangueira, a desprender-se pelo próprio peso, no instante devido, para a sua providencial serventia como alimento aos pássaros.

Antonio olhou para o alto, depois para baixo, e prosseguiu caminhando pelo calçamento à margem da rua estreita de paralelepípedos. Duas quadras apenas separavam o escritório de seu destino. Um procedimento aparentemente banal: caminhar despretensiosamente pela calçada àquela hora da manhã, com o sol incidindo a setenta graus em relação ao corpo franzino, disposto verticalmente. Sombra. Mas tratava-se antes de um evento cíclico, porém de periodicidade variável. E talvez fosse essa inconstância (ou variabilidade temporal) que iludisse Antonio quanto à percepção de relevância naquilo que o movia.

Chegando aos Correios, ele cumprimentou o atendente que já lhe era familiar. Olhou para o alto, depois para baixo. O funcionário fingiu não atentar ao cacoete. E Antonio relevou ante a curiosidade recalcada do atendente. Este tratou do despacho de rotina: as verificações do destinatário, remetente, peso e custo. Antonio pagou, olhou para o alto, depois para baixo. Então o atendente, de ar mexeriqueiro e forjando certa intimidade, questionou-o com relação ao conteúdo de tais correspondências.

Foi daí que Antonio lhe disse sobre a existência daqueles cadernos, cujas inscrições em signos evocavam aos descaminhos erráticos da civilização. A panfletagem subversiva a ordem estabelecida pela rotina e pelo conformismo. Problemas irresolutos; tencionavam romper a circularidade cristalina das horas puras (porém vazias) dos dias. Eram esses os tais cadernos, enviados aos destinatários, nem sempre conhecidos pessoalmente pelo remetente. Mas cada sectário comungava, a sua maneira, daquele levante, apresentando diferentes graus de afinidade ao movimento. Os signos viriam (ou não) a ser desvelados um dia, profetizou. Como a gestação do cérebro em duas metades duma semente, tendo por objetivo a luminescência quando propriamente ligado ao coração.

Antonio olhou para o alto, depois para baixo. Então prosseguiu: maldita a hora que fui lhe dizer isso! Era como se, num átimo, ele houvesse sido impelido através de um duto conectando um lado a outro. Condensação de nuvem amorfa das ideias precipitando súbita a compreensão. Cuidado, isso pode ser contagioso! Ele disse ao atendente.

* * *

Ele chegou em casa a noite, depois de mais um dia como outro qualquer. Beijou a mulher na boca e também a fronte de cada uma de suas duas filhas. Teria sido mais do mesmo não fosse um sutil acréscimo na intensidade dos gestos. A mulher lhe indagou: Como foi o seu dia, querido? Tudo na mesma lá nos Correios.

Um remoinho girava em sua cabeça; e ele olhou para o alto, depois para baixo.


 

3 comentários

Márcio Ibiapina

Jorge,
Sensacional! Ideias são realmente contagiosas (ou contagiantes) e o seu ótimo texto também.
Abraço,
Márcio.

andre albuquerque

Uma fantástica realidade inserida no prosaico , interpretando o mundo; os cadernos , Pedra da Esmeralda (?), cujo detentor parece querer dizer-nos que o macrocosmo repete o microcosmo,através da linguagem corporal sui generis.Enfim,uma narrativa que faz pensar e refletir,sobre o pensamento e a reflexão; um autentico Jorge Xerses.Parabéns.

Jorge Xerxes

Caros Marcio e André,

Agradeço sinceramente pela Atenção e pelos Vossos Comentários.

É isso o que nos motiva a prosseguir escrevendo...

Abraços, Jorge