Despertei com o estranhamento súbito de
enxergar as auras. Algum efeito causado pela alteração visual do meu olho
direito. Eventual flash de uma luz púrpura que envolvia os objetos e,
principalmente, as pessoas.
Quando minha mãe morreu, deixou como
herança a tristeza infinita de sua ausência. A nossa casa não era a mesma sem
ela; meu pai, meu irmão e eu pusemo-nos num patamar distinto de comunicação,
pautado em silêncios. A inexistência do som parecia-nos então natural ou, ao menos,
a única condição viável. O ruído mínimo, ocasional, do choque metálico de um
simples talher com o prato de porcelana desencadeava uma súbita desordem das
ideias, que se desdobrava em insustentável troca de olhares de repreensão. Os
olhares, sempre eles, a expressarem alguma coisa que, de tão grave, não cabia
nas palavras.
Depois que ela partiu, o corpo de uma
menina apareceu na parede da sala, dependurado no prego onde havia, até então,
o quadro de um palhaço. A garota, aparentando pouco menos de dez anos de idade,
vestia-se de roupas antiquadas, como aquelas da segunda metade do século
passado. Ela tinha longo cabelo liso e negro, a pele pálida, e acompanhava o
nosso vagar com aqueles seus olhos avermelhados e úmidos. Parecia chorar em
silêncio. Passou dias ali, pregada naquela parede. Não pronunciava uma palavra
sequer. Era esse o fato inusitado que agravava significativamente a estranheza
daqueles dias.
Fato é que meu pai e meu irmão faziam
vistas grossas à menina. Eu a via, mas por causa da alteração em meu olho
direito, nada mencionei a respeito. Percebi que meu pai e meu irmão evitavam sequer
fitar aquela parede. É bem possível que eles também a vissem. Pode ser que também
sofressem de algum dano visual decorrente do trauma e, pelo mesmo motivo meu,
evitassem tocar no assunto. Nunca saberei nada além do que descrevo nesse breve
relato, porque a condição de luto estabelecida preconizava o mais absoluto silêncio.
Àqueles dias, saí poucas vezes de casa. O
sol ofuscava a minha visão, chegava a ficar sem energias; é verdade que eu não
vinha me alimentando bem. Algumas pessoas eu via rodeadas por imensa aura
púrpura, com os raios de luz emanando do coração em linhas concêntricas que se
tornavam difusas proporcionalmente a distância desse órgão, sabidamente pulsante
e vital. Outras criaturas já não tinham essa característica: a extremidade de
seus corpos era simplesmente delimitada pela superfície das suas carnes, sem
qualquer alteração na luminosidade. Curiosamente os “luminescentes” caminhavam
espaçados mesmo em meio à multidão, permitindo o trânsito livre de suas luzes.
Os demais se permitiam uma maior aproximação. Isso me deixava ainda mais
intrigado. Mas não cheguei a desenvolver especulação ou experimentos nesse
sentido. Como adiantei, minha própria fragilidade impunha limites ao
raciocínio, e me limito a descrever aqui essas percepções e imagens com a
clareza e a isenção possíveis.
Eu estava só no quarto com minha mãe
quando, em seus estertores, ela pronunciou a sua frase derradeira: Eu voltarei
para vê-los. Essa fala, inesperada, causou a sensação de súbita compressão dos
meus pulmões, concomitante a uma
corrente atravessando minha espinha ao desvanecer de sua vida. Tenho de
confessar que, desde aquele instante, o ar me tem sido escasso. Apesar disso,
não abandonei o meu hábito de fumar.
Não me considero sensível ou
supersticioso, visto que não chorei em seu velório ou durante o enterro; assim
como aconteceu com o meu pai e o meu irmão. Apenas – e aos poucos – aquele
mutismo foi-se instalando em nossas vidas. Especialmente após retornarmos para
casa.
Contavam quatro dias quando, pela manhã,
encontramos minha mãe sentada ao sofá da sala, vestida de branco, onde
costumava ficar com o gato em seu colo. Na parede, às suas costas, a menina
pregada; os olhos ainda mais vermelhos e úmidos que de costume.
Ela nos disse que não estava gostando
nada daquilo, daquela sua nova função e levou-nos para um passeio noutra
residência onde, à semelhança da garota, era ela quem estava pregada à parede
da casa, a velar pelos sombrios moradores. E então estava claro para nós três,
do mundo dos vivos, que compartilhávamos daquilo tudo quanto não ousávamos
conversar a respeito: a menina pregada, as visões e as sensações funestas.
Mas quanto ao que minha mãe alentava, em
nada podíamos minorar o seu fardo, senão aquiescermos à presença da garota em
nossas vidas – para todo o sempre.
Despertei encharcado em suor. O súbito
estranhamento de enxergar as auras. Minha cabeça latejava de dor. Algum efeito
causado pela alteração visual do meu olho direito. Senti-me, porém,
infinitamente aliviado. O meu pai me acompanhou ao oftalmologista. Foi este
quem diagnosticou o descolamento da retina. Não poderei escrever por uns
tempos. Mas, enquanto eu dito, minha mãe digita ao computador.
1 Comentário
Uma bela narrativa, de significados que se interpenetram ;aponta para o fantástico onde vivemos ,sem perceber, o nosso cotidiano .Ao término de sua leitura,lembrei de uma entrevista de Hitchcock,afirmando que a imaginação era capaz de extrair o macabro de um raio de sol; você conseguiu semear o fantástico em vários níveis.Parabéns,amigo.
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