terça-feira, 18 de dezembro de 2012

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Convalescença


Despertei com o estranhamento súbito de enxergar as auras. Algum efeito causado pela alteração visual do meu olho direito. Eventual flash de uma luz púrpura que envolvia os objetos e, principalmente, as pessoas.

Quando minha mãe morreu, deixou como herança a tristeza infinita de sua ausência. A nossa casa não era a mesma sem ela; meu pai, meu irmão e eu pusemo-nos num patamar distinto de comunicação, pautado em silêncios. A inexistência do som parecia-nos então natural ou, ao menos, a única condição viável. O ruído mínimo, ocasional, do choque metálico de um simples talher com o prato de porcelana desencadeava uma súbita desordem das ideias, que se desdobrava em insustentável troca de olhares de repreensão. Os olhares, sempre eles, a expressarem alguma coisa que, de tão grave, não cabia nas palavras.

Depois que ela partiu, o corpo de uma menina apareceu na parede da sala, dependurado no prego onde havia, até então, o quadro de um palhaço. A garota, aparentando pouco menos de dez anos de idade, vestia-se de roupas antiquadas, como aquelas da segunda metade do século passado. Ela tinha longo cabelo liso e negro, a pele pálida, e acompanhava o nosso vagar com aqueles seus olhos avermelhados e úmidos. Parecia chorar em silêncio. Passou dias ali, pregada naquela parede. Não pronunciava uma palavra sequer. Era esse o fato inusitado que agravava significativamente a estranheza daqueles dias.

Fato é que meu pai e meu irmão faziam vistas grossas à menina. Eu a via, mas por causa da alteração em meu olho direito, nada mencionei a respeito. Percebi que meu pai e meu irmão evitavam sequer fitar aquela parede. É bem possível que eles também a vissem. Pode ser que também sofressem de algum dano visual decorrente do trauma e, pelo mesmo motivo meu, evitassem tocar no assunto. Nunca saberei nada além do que descrevo nesse breve relato, porque a condição de luto estabelecida preconizava o mais absoluto silêncio.

Àqueles dias, saí poucas vezes de casa. O sol ofuscava a minha visão, chegava a ficar sem energias; é verdade que eu não vinha me alimentando bem. Algumas pessoas eu via rodeadas por imensa aura púrpura, com os raios de luz emanando do coração em linhas concêntricas que se tornavam difusas proporcionalmente a distância desse órgão, sabidamente pulsante e vital. Outras criaturas já não tinham essa característica: a extremidade de seus corpos era simplesmente delimitada pela superfície das suas carnes, sem qualquer alteração na luminosidade. Curiosamente os “luminescentes” caminhavam espaçados mesmo em meio à multidão, permitindo o trânsito livre de suas luzes. Os demais se permitiam uma maior aproximação. Isso me deixava ainda mais intrigado. Mas não cheguei a desenvolver especulação ou experimentos nesse sentido. Como adiantei, minha própria fragilidade impunha limites ao raciocínio, e me limito a descrever aqui essas percepções e imagens com a clareza e a isenção possíveis.

Eu estava só no quarto com minha mãe quando, em seus estertores, ela pronunciou a sua frase derradeira: Eu voltarei para vê-los. Essa fala, inesperada, causou a sensação de súbita compressão dos meus pulmões,  concomitante a uma corrente atravessando minha espinha ao desvanecer de sua vida. Tenho de confessar que, desde aquele instante, o ar me tem sido escasso. Apesar disso, não abandonei o meu hábito de fumar.  

Não me considero sensível ou supersticioso, visto que não chorei em seu velório ou durante o enterro; assim como aconteceu com o meu pai e o meu irmão. Apenas – e aos poucos – aquele mutismo foi-se instalando em nossas vidas. Especialmente após retornarmos para casa.

Contavam quatro dias quando, pela manhã, encontramos minha mãe sentada ao sofá da sala, vestida de branco, onde costumava ficar com o gato em seu colo. Na parede, às suas costas, a menina pregada; os olhos ainda mais vermelhos e úmidos que de costume.

Ela nos disse que não estava gostando nada daquilo, daquela sua nova função e levou-nos para um passeio noutra residência onde, à semelhança da garota, era ela quem estava pregada à parede da casa, a velar pelos sombrios moradores. E então estava claro para nós três, do mundo dos vivos, que compartilhávamos daquilo tudo quanto não ousávamos conversar a respeito: a menina pregada, as visões e as sensações funestas. 

Mas quanto ao que minha mãe alentava, em nada podíamos minorar o seu fardo, senão aquiescermos à presença da garota em nossas vidas – para todo o sempre.

Despertei encharcado em suor. O súbito estranhamento de enxergar as auras. Minha cabeça latejava de dor. Algum efeito causado pela alteração visual do meu olho direito. Senti-me, porém, infinitamente aliviado. O meu pai me acompanhou ao oftalmologista. Foi este quem diagnosticou o descolamento da retina. Não poderei escrever por uns tempos. Mas, enquanto eu dito, minha mãe digita ao computador.



 

1 Comentário

andre albuquerque

Uma bela narrativa, de significados que se interpenetram ;aponta para o fantástico onde vivemos ,sem perceber, o nosso cotidiano .Ao término de sua leitura,lembrei de uma entrevista de Hitchcock,afirmando que a imaginação era capaz de extrair o macabro de um raio de sol; você conseguiu semear o fantástico em vários níveis.Parabéns,amigo.