Os pombos não me
estranham mais,até pousam aqui no banco, ao meu lado;da espera arrulhante do
milho, ao avanço direto sobre o saco , poucos dias de avaliação mútua. Fico a
sorrir,da facilidade com que os hábitos se afeiçoam a nós, homens e aves.Passo
as tardes aqui, na Praça Rio Branco, a alimenta – los e encorajar rasantes cada
vez mais longos sobre mim , bípede implume, na contemplação muda e aparvalhada
da sua arte de voar.
Olho a vida passar
nos seus bicos; um ninho em formação,o arrulho de ciúme de um novo parceiro dos
céus ; a qualquer ocorrência celeste, chuva ou sol: fuga e regresso, exercícios
vespertinos de liberdade e leveza de pombos.Revoam ao longe, fazem um desvio em
direção á torre da igreja e aterrisam, alguns sobre a estátua do chanceler , á
minha frente, outros se acomodam como podem, no pequeno gramado , perto do rio.
O milho está
acabando e ainda não sei se voltarei amanhã.Os dias têm sido frios, feios e
cinzentos, uma desolação externa que pega a gente pelo pé, se não tivermos
cuidado com o motor da melancolia , esse inverno teimoso. Um sol morno, vez por
outra, joga-me depressão no colo, com o pronto exorcismo pelos meus amigos
voadores .
Antigos
companheiros vêm rever-me , sentam aqui, ao meu lado, conversam ainda
furtivamente sobre o passado ou ajudam-me alimentando os pombos, numa espécie
de obsequioso silencio , depois saem, no passo trôpego dos velhos, nada mais
esperando de mim,alem do silencio.O general Macedo ás vezes aparece á tardinha
, no passo miúdo e tremulo do Parkinsonismo . E os do partido ? Passam,
olham-me como olhariam a múmia de Lênin e percebo que ainda sou um calo nas
suas vidas,uma perna estirada na histórica estrada do partido, para o esbarro
ou queda de alguém , pouco importa.
Tornei-me um
sobrevivente problemático, pois nem morri nem vivo oficialmente (estaria morto
no sentido lato?) ; penso no já longínquo 1973,no fusca metralhado e
incendiado,nos quatro cadáveres carbonizados,nas fotos dos jornais, na viagem
aflita de minha irmã ao
interior, para tranqüilizar minha mãe,
dizer que aquela foto bem comportada no jornal era minha, mas nada
provava que eu estivesse realmente morto e ainda querer que minha mãe
acreditasse ,sem lhe contar o resto.
Mas fiz o que
foi preciso para Ângela , às crianças e até para o bem da causa que abandonei
como que abandona um navio em chamas.Morri; seis anos depois reapareci, de
carrão do ano, visitando minha mãe que chorava de alegria.Vi a última foto de
meu pai, morto de verdade no meu interlúdio de defunto, com estadia no Chile e
tudo pago. E ninguém me confirmou a ressurreição.
Cumpriram o que
prometeram.Queriam uma saída honrosa.Quem diria, os torturadores queriam mudar
o jogo e eu seria um instrumento da mudança. .Entreguei nove companheiros que
sabia estarem fora do país, viajando sob nomes frios e passaportes quentes ,
como parte do combinado.Fiquei de queixo caído : eu, ex - terrorista, agente de
paz e concórdia.
Surpreendente
aquela estrutura em ação.Todo aquele aparato triturador de gente,era apenas
anarquia perfilada ,uma gigantesca farra na caserna; iniciaram um processo
sobre o qual perderam o controle e depois começou a recuo.A turma que fazia
aquilo não era idiota . Inteligência e perversidade , em convivência íntima,
fazem coisas terrivelmente notáveis.
Procuraram-me
através do Marcos , meu até então alienado parceiro de pelada e colega de
curso, lá da Católica ; mijei de surpresa : eu, uma Polyana de esquerda ? Sim
senhor, no melhor dos mundos esquerdistas possíveis, até a cantada direta numa
mesa do Tio Pepe ,ao som do mar e á luz do céu profundo A anarquia
disfarçada em super ordem , em rigidez ditatorial, a baderna fardada,
assassinando e até pilhando , nas suas conveniências .A maioria discordante,
silenciando . Daí, eu morri.Carbonizado. Tiçãozinho. O então coronel Macedo era
o regente daquela outra orquestra vermelha , de sangue.Á perfeição, regeu minha
saída e reentrada em cena ; se não triunfal, eficiente.
Os companheiros
dirigentes sabendo de tudo; ninguém foi preso por minha falação.Arranjaram-me
até emprego num órgão federal outrora controlado por nós,voltei a usar
meu nome verdadeiro e tudo o mais , seis anos depois. Ninguém da imprensa
perguntou nada.Quem seria besta , mesmo na tal ditamole ? Ainda empastelavam
jornais, principalmente os nanicos.
O coronel e sua
turma fizeram meia-volta do teatro do paredão e do pau de ararara. Mandaram um
relatório para os gringos,informando da minha prisão e morte, durante a fuga,
com outros três terroristas,treinados em Cuba, doutorados em terrorismo pela
Universidade Patrice Lumumba .Genial a minha nova história de vida.
Na repartição:
ex-preso político ,libertado, retomando a vida . Meu (a essas alturas) querido
coronel,saiu de cena como torturador e voltou a ser o que deveria ser um
militar, o partido e a repressão negociaram minha morte e minha ressurreição
.Os gringos aceitaram sem pestanejar a versão do velho Macedo, our old friend ,
recomendaram até sua promoção e lá se vão trinta e três anos de sua discreta
ascensão a general de brigada.
Semana passada,
perguntei ao general, o porquê de tudo isso; respondeu-me com uma frase que
parecia saída do I Ching ; que a boa estratégia recomenda sempre deixar uma
discreta saída para o inimigo encurralado, que não o faça sentir-se
acuado,atacando e obrigando o vencedor a massacrá-lo , transformando-o em
mártir cultuado de uma causa perdida e inútil ; fazê-lo pensar a retirada como
uma estratégia produto exclusivo da sua astúcia, tornando a rendição um processo
mais leve e sem o rancor dos perseguidos. No Planalto , um bruxo caolho e
fardado , enxergava no horizonte ,a aproximação de hiperinflação , que somada á
repressão política daria noutra coisa ,bem mais explosiva que meus inocentes
coquetéis molotov.O milagre econômico apresentava a sua conta, tal um garçom
bem educado da Bond Street. Então, urge sair enquanto é tempo ; Macedo
repaginado e sempre igual a si mesmo, Il Gattopardo da caserna , mesmo de
pijama e chinelo franciscano .
Os pombos revoam
; momentaneamente não ouço o general , suas palavras talvez assumam formação em
delta, lá no céu , junto ás recém-chegadas andorinhas , seres semi –
vespertinos ,evitados pelos pombos .
Acho bonito, semeio de milho as pedras da rua
e espero o seu pouso , pacificadas e ruidosas. Contemplo o general, uma
fantasmagoria contra o ocaso do sol , em fala trôpega sobre paz , liberdade e o
que valia ser feito por ela, até matar. Escuto – o tranqüilo e acrescento que
vencedores, faríamos a mesma coisa. Ele esbraveja e tropeça na gagueira
espumosa da doença.
O olhar ainda é
firme e enérgico, as mãos tremem em desvario parkinsoniano.Ás vezes cospe as
palavras , retoma o ritmo inicial durante algum tempo, a emoção traindo quanto
fala de poder , equilíbrio, daquela guerra na qual tomamos parte ; halos senis
delineavam suas pupilas . A barba mal feita dos parkinsonianos solitários
salpica–lhe a velha face crispada pela arrogância vã e brutalidade
resignada.Envelhecia cada vez mais sozinho.
Levantamos do banco , fomos até o boteco em
frente , antigo reduto dos portuários . Pedimos café , sorvido em mutismo
cúmplice e concentrado . Hoje eu pago a conta , afinal é sexta feira .
4 comentários
André,
Gostei Muito do Texto!
"Fico a sorrir,da facilidade com que os hábitos se afeiçoam a nós, homens e aves."
A metáfora de alimentar os pombos é perfeita àquilo que se sucede na narrativa!
Um Grande Abraço, Jorge
Jorge:grato pelo olhar , arguto e estimulante.Tentei fazer um pequeno retrato de um Brasil que gostaria que fosse coisa do passado.Forte abraço.
Que bom testemunhar esta silenciosa e desconcertante conversa com o passado, este ainda recente e tenebroso passado. Um primor de texto, André.
Abs
Marcelo
Não sei se no Brasil, a recordação do passado ou do que poderia ter sido o passado, ajudaria a não repeti-lo,mesmo enquanto farsa.Enquanto isso, tentamos contar estórias em cima do passado .Grato pelo olhar e comentário,meu amigo.Forte abraço.
Postar um comentário