segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

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Veículos da Civilização


Depois de cruzar a portaria, em dois passos cheguei à beira da calçada. O meio-fio é uma linha tênue, que serve de barreira entre a relativa segurança das pedras portuguesas e a natureza de asfalto selvagem. Depois dessa linha, você está errado, sempre errado e as pessoas buzinam. Como ser errado que está, é bom que se cuide, ou vão passar por cima de você. Mas pensei nisso ao longo da vida. Atravessando muitas e muitas ruas. Entre a minha portaria e aquele meio-fio não há tempo para pensar nisso tudo.

Não há muito tempo para pensar em nada. É tudo bem automático. É tão ruim atravessar aqui que dá tempo de acender um cigarro. Na verdade, é tão bom atravessar aqui que dá tempo de acender um cigarro. Apalpei os bolsos.

- Merda.

Acho que cheguei a dizer baixinho. Ficou no bolso da outra calça. Colocar os cigarros para lavar, por acidente, é bastante simbólico. Mas é o tipo de descuido que me sinaliza minha depressão. Mas pelo menos ainda coloco as calças para lavar, o que aponta para um quadro estável.

Sem cigarros, não me restava alternativa, tinha de atravessar imediatamente. Olhei para a direita e não havia carros. Pisquei, cocei os olhos, olhei de novo. Nada. Cheguei mesmo a considerar que tivessem mudado a mão da Voluntários da Pátria. Olhei para o outro lado. Nenhum veículo. Nenhum voluntário da pátria sobre rodas. Como se os carros só passassem por ali para que eu tivesse tempo de começar a fumar. Como esqueci o maço em casa, não havia porque passar na minha porta.

Mas sei que não tenho esse poder. Não mais que de repente, quase que um segundo depois, um veículo enorme e azul, como aquelas baleias, veio da direita. Singrando furioso o asfalto, preenchendo de alívio meus olhos e ouvidos. É bom que haja carros disponíveis, quando a gente planeja se lançar debaixo deles.

Queria ter fumado um último cigarro.

1 Comentário

Jorge Xerxes

Eduardo,

Um Excelente Conto!

"Colocar os cigarros para lavar, por acidente, é bastante simbólico."

Grande Abraço, Jorge