Enquanto Patrícia não volta
Agora a água calma reflete apenas dois ou três raios do sol
que se coloca abaixo do horizonte, naquele lugar aonde os vivos nunca chegaram.
Aquele lugar que escapa mais rápido que a escuna de nosso pai. Mas tenho que
lhe dizer, Patrícia: na hora em que cheguei aqui ele estava sobre meus ombros,
e o calor só fazia lembrar você. Sua mão quente que segurava na minha quando a
mãe nos deixava ir sozinhos até o mercado, e você levava dentro do sapato
alguns trocos que tinha guardado por semanas, e então comprava o doce de
abóbora que eu comia na volta para casa.
Já se passaram três dias de vigília. Três dias que os velhos
deixaram de comer e que Aninha não sai da cama. Três dias que o mesmo sol me
tem como companhia. Dona Rosa, a vizinha beata de Tadeu, diz que é pecado pedir
a volta de quem já morreu, principalmente com morte fresca. Mas eu não ligo,
Patrícia, e se eu pudesse buscaria você aí, bem debaixo dessa linha distante
aonde os vivos não chegam. Mas, se isso fizesse, a mãe e o pai não comeriam
nunca mais, e Ana me amaldiçoaria não só pela sua, mas por minha morte e a dos
velhos também.
Eu sei que você diria agora que eu não me consumisse pela
culpa, que meu nado nem é tão bom assim para tirar a irmã mais velha da boca do
mar. Mas eu sei, maninha, que o crime não foi a pouca habilidade. Porque vê-la
se debater por entre as ondas enquanto seus cabelos ruivos sumiam no meio da
espuma e depois reapareciam sobre a boquinha aberta e os olhos esbugalhados foi
demais pra mim. Confesso que antes de tudo, antes do estômago estrangulado e da
imobilidade, antes da dúvida e do medo, você parecia brincar. Uma brincadeira
daquelas que colocam qualquer um no desespero mas, apesar de tudo, uma
brincadeira. E foi tarde que veio a consciência da realidade, a sensação do
perigo, o cheiro estranho do medo, o silêncio ocre do fim.
O sol já foi, Patrícia, e eu preciso voltar pra casa. O pai
tem que tomar banho e a mãe pentear os cabelos. Não sei se você sabe, mas
Aninha não sai mais de sua cama, e toda vez que tento trocar os lençóis cheios
de urina ela coloca meu nome na lista do diabo. Mas eu não ligo, Patrícia, pois
é percebida e grande a falta que você faz, tão grande que abriu-se um buraco no
meio do tempo. O buraco levou-nos tudo. Levou-nos você, levou-nos a vida. E as
ondas agora estão tão pequenas e tímidas que eu quase posso ver os seus
cabelos. Quem sabe você volta... Vem, vem comigo, Patrícia. Vamos para casa.
Vem pentear os cabelos da mãe...
***
Mariela Mei é poeta e escritora. Bloga em gracadesgraca.com
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3 comentários
Que beleza de conto, uma sensibilidade lírica entorno de um vazio fúnebre emocionante! Leitura prazerosa. Parabéns.
Muitíssimo obrigada, Pablo, pela leitura e retorno!
Adoraria ver a volta de Cotidiano Ornamental!
Beijo grande
Conto adorável mesmo...
Esses dias estava justamente pensando na Cotidiano... rs. Obrigado pelo incentivo! Beijo
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