quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

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CONTAÇÃO: "Enquanto Patrícia não volta" - por M.Mei





Enquanto Patrícia não volta


Agora a água calma reflete apenas dois ou três raios do sol que se coloca abaixo do horizonte, naquele lugar aonde os vivos nunca chegaram. Aquele lugar que escapa mais rápido que a escuna de nosso pai. Mas tenho que lhe dizer, Patrícia: na hora em que cheguei aqui ele estava sobre meus ombros, e o calor só fazia lembrar você. Sua mão quente que segurava na minha quando a mãe nos deixava ir sozinhos até o mercado, e você levava dentro do sapato alguns trocos que tinha guardado por semanas, e então comprava o doce de abóbora que eu comia na volta para casa.

Já se passaram três dias de vigília. Três dias que os velhos deixaram de comer e que Aninha não sai da cama. Três dias que o mesmo sol me tem como companhia. Dona Rosa, a vizinha beata de Tadeu, diz que é pecado pedir a volta de quem já morreu, principalmente com morte fresca. Mas eu não ligo, Patrícia, e se eu pudesse buscaria você aí, bem debaixo dessa linha distante aonde os vivos não chegam. Mas, se isso fizesse, a mãe e o pai não comeriam nunca mais, e Ana me amaldiçoaria não só pela sua, mas por minha morte e a dos velhos também.

Eu sei que você diria agora que eu não me consumisse pela culpa, que meu nado nem é tão bom assim para tirar a irmã mais velha da boca do mar. Mas eu sei, maninha, que o crime não foi a pouca habilidade. Porque vê-la se debater por entre as ondas enquanto seus cabelos ruivos sumiam no meio da espuma e depois reapareciam sobre a boquinha aberta e os olhos esbugalhados foi demais pra mim. Confesso que antes de tudo, antes do estômago estrangulado e da imobilidade, antes da dúvida e do medo, você parecia brincar. Uma brincadeira daquelas que colocam qualquer um no desespero mas, apesar de tudo, uma brincadeira. E foi tarde que veio a consciência da realidade, a sensação do perigo, o cheiro estranho do medo, o silêncio ocre do fim.

O sol já foi, Patrícia, e eu preciso voltar pra casa. O pai tem que tomar banho e a mãe pentear os cabelos. Não sei se você sabe, mas Aninha não sai mais de sua cama, e toda vez que tento trocar os lençóis cheios de urina ela coloca meu nome na lista do diabo. Mas eu não ligo, Patrícia, pois é percebida e grande a falta que você faz, tão grande que abriu-se um buraco no meio do tempo. O buraco levou-nos tudo. Levou-nos você, levou-nos a vida. E as ondas agora estão tão pequenas e tímidas que eu quase posso ver os seus cabelos. Quem sabe você volta... Vem, vem comigo, Patrícia. Vamos para casa. Vem pentear os cabelos da mãe...




***
Mariela Mei é poeta e escritora. Bloga em gracadesgraca.com
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3 comentários

Pablo Flora

Que beleza de conto, uma sensibilidade lírica entorno de um vazio fúnebre emocionante! Leitura prazerosa. Parabéns.

M.Mei

Muitíssimo obrigada, Pablo, pela leitura e retorno!
Adoraria ver a volta de Cotidiano Ornamental!
Beijo grande

Pablo Flora

Conto adorável mesmo...
Esses dias estava justamente pensando na Cotidiano... rs. Obrigado pelo incentivo! Beijo