O Mito
Aristófanes foi um poeta cômico ateniense, produziu peças teatrais de
grande riqueza literária, tendo como tema a vida política da Grécia, mas no
Banquete (São Paulo, Martin Claret: 2007), Platão o transformou em uma das
personagens de seus diálogos, a qual além de defender sua teoria sobre a origem
do amor (Eros), tal quais as demais, também defende a existência de uma
terceira espécie de humanos, pois além de homens e mulheres, segundo a
personagem havia um terceiro gênero, o qual reunia os dois gêneros condensados
em um só corpo: O andrógino.
Esses assim como os deuses gregos, tinham a forma esférica, mas podiam
caminhar entre as duas demais classes de humanos, contudo, um dia achando-se
poderosos, alguns andróginos decidiram escalar o olimpo para atacarem os deuses, o que provocou nesses, grande ira,
a qual foi revertida na arquitetura do plano de atacá-los com um raio, para que
assim pudessem ser divididos, após o ferimento derivado de tal apartação
tiveram seus ferimentos curados pelo deus Apolo.
Daí por diante tais humanos passaram a procurar suas metades, quando a
encontravam, sentiam-se extremamente felizes, contudo, ao tentar a fusão dos
corpos, sem o sucesso da união da origem, motivados por grande tristeza, muitos
perdiam o a vontade de comer, o que os levava à morte, assim a metade que
resistira, procurava uma outra, que podia ser uma dos dois gêneros humanos já
existentes, a qual fosse o oposto da sua, por misericórdia Zeus decidiu
transportar os órgãos de procriação dos antigos andróginos para frente, o que
lhes possibilitou a procriação, pois antes se acreditava que estes nasciam da
terra. Eis o fim dos andróginos, os quais se desintegraram entre homens e
mulheres.
A Presença da Idéia do Andrógino no
cancioneiro brasileiro
O desaparecimento dos andróginos, não pôde decretar o fim dos sentimentos
de tais seres, principalmente aqueles nutridos, após o castigo dos deuses, o
sentimento de sentir-se ao meio perpetua entre homens e mulheres até os dias atuais,
tendo sido transmitidos por vários poetas, escritores românticos, alguns
compositores brasileiros parecem ser os mais fiéis descendentes dos andróginos.
O desejo de querer unir-se ao outro ser para sentir-se
inteiro aparece em toda a letra da canção Sentidos,
de Zélia Duncan, após rejeitar a ação do outro, mostra que a rejeição se dá
por não querer ver tais ações como um sorriso, um olhar distante, mas sim por
querer unir-se ao corpo da cara metade para entender suas expressões e emoções:
Não quero os seus olhares/ Quero os seus cílios nos
meus olhos/ Piscando pra mim/ Transfere pro meu corpo/ Seus sentidos/ pra eu
sentir/ A sua dor, os seus gemidos/ E entender porque/ quero você.
Tais versos traduzem perfeitamente o sentimento da antiga classe humana,
após a separação do corpo e o reencontro com a sua outra parte, e a constatação
da impossibilidade de voltarem a ser um só novamente como escreveu o filósofo
grego: quando se encontraram,
abraçaram-se e se entrelaçaram num insopitável desejo de novamente se unirem
para sempre.
A tristeza que causara a morte de alguns andróginos, os quais já tinham
perdido o desejo de viver por não conseguirem fundir-se aos seus pares, fazendo
com que não quisessem se alimentar mais, foi explicitada por Renato Russo na
letra da canção Sete Cidades:
Já me acostumei com a tua voz/ Com teu rosto e teu
olhar/Me partiram em dois/ E procuro agora o que é minha metade/ Quando não
estás aqui/ Sinto falta de mim mesmo/ E sinto falta do meu corpo junto ao teu.
Alguns compositores podem realmente ser denominados como descendentes dos
andróginos, pela precisão com a qual retratam em suas letras de amor,
sentimentos originalmente comuns ao extinto gênero humano, numa versão do funk Fico assim sem você, cantado por Claudinho
e Buchecha, adaptada para uma versão de voz e violão, por Adriana Partimpim,
tornou-se possível perceber novamente a presença do antigo mito grego: Avião sem asa/ Fogueira sem brasa/ sou eu
assim sem você. A falta de um outro fazendo um Eu sentir-se ao meio
percorre toda a construção da letra.
Além de interpretar uma canção com a presença do mito, Adriana com o
sobrenome Calcanhoto, também compôs uma obra, a qual já denuncia tal presença
no titulo: Metade: Estou em milhares de
carros/ Eu estou ao meio/ Onde será que você está agora. Mais uma vez a
inadequação dentro da existência do ser que se sente incompleto sem o amado por
perto.
Recentemente, a banda cuiabana Vanguart batizou seu segundo disco com o
título: Boa parte de mim vai embora,
frase que aparece como verso dentro da canção Nessa cidade: E não vem me dizer que é errado/ Você sabe o que aconteceu./ Boa parte de mim
vai embora,/ A sua parte que hoje sou eu.
Trazendo a herança do mito para mais perto
de todos aqueles que sobrevivem ao período chamado por alguns de
pós-modernidade, há muitas canções que retratam o tema, portanto, este
texto não o esgota, apenas pontua alguns momentos de perpetuação de um mito
grego dentro da cultura contemporânea do nosso país, pois as referências à
mitologia grega associada à música estão para além de Orfeu e do canto das
sereias.
2 comentários
Muito interessante esta leitura. Atrai-me a cultura dos mitos da Grécia Antiga.
Um beijo
Tema instigante e por demais pertinente.
Cadinho RoCo
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