quinta-feira, 28 de março de 2013

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DENTRO DA CABEÇA


- Lágrimas, eu já tinha visto muitas, inclusive as minhas refletidas no espelho, pela distância pareciam ser de um outro. Estranho como ver parece anular o sentir. Mas aquela foi a primeira vez que das lágrimas tive a curiosidade de enxergar os olhos, me fazendo querer entrar dentro deles, caminhar até o pensamento e entender porque aquela mulher chorava tanto, dentro de um carro parado no estacionamento do shopping center.
Não detive meu impulso, com três batidas no vidro, tentei iniciar a comunicação, mas havia uma outra barreira, esta que embora eu não pudesse ver, pude sentir. Com um leve movimento de cabeça, ela me olhou, de um jeito que ninguém nunca havia me fitado, a boca permaneceu túmulo, dei-me por satisfeito após sentir o calor de sua mão sobre a minha, certamente, ainda estava viva, alguém que pensa em morrer, não possui aquele calor.
- Estranha a gentileza daquele cara, por tantas vezes chorei sem que ninguém enxergasse as minhas lágrimas, os desejos contrariados da infância, os conflitos da adolescência, as desilusões amorosas, pareciam ter existido só pra mim até hoje.
Me acostumei tanto com as lágrimas, que nunca usei maquiagem, pois sei que probabilidade borrá-la é grande, logo hoje, esqueci meus óculos escuros, mas aquele cara...
- São tantos os motivos que podem fazer alguém chorar, mas a maioria consegue disfarçar, engolir o choro, como a ordem dada pelos pais na infância, quando sentem que há uma tentativa de chantagem por meio das lágrimas. Mas aquela mulher, num carro bacana, sacolas de lojas caras, dizem que dinheiro não compra felicidade, mas, talvez, ajude a maquiar a tristeza. Quando isso não é possível, a coisa é que a coisa está feia!
- Carro modesto, meio largado no modo de se vestir, deve ter tanta conta a pagar, como pôde me perceber dentro daquele enorme estacionamento? Amanhã volto lá, quero encontrá-lo, quem sabe conversar, pode ser que a sua ternura consiga desenterrar alguma coisa de dentro de mim.
- Puta que pariu! Amanhã é dia, tenho de trabalhar, mais um final de semana sem ver o meu filho, ex-mulher é foda! Combina uma coisa e não cumpre, esperei por mais de uma hora naquele estacionamento e nada.
- Amanhã eu tenho sessão, queria que fosse que nem tratar uma inflamação na garganta, a demora do resultado me angustia.
Solitários em seus carros, o retorno para casa, ordens para dar, afazeres a serem cumpridos e o silêncio que não seria interrompido pelas palavras de dentro da cabeça.

1 Comentário

pianistaboxeador21

Caríssimo Fernando, que pérola! Lembro que você tinha enviado o primeiro parágrafo com a proposta de escrevermos juntos, eu vc, a Márcia e Charles, pena que não consegui. Acho que o texto era para ser seu mesmo. Gostei muito das alternâncias de focos narrativos, masculino e feminino. Tudo tão duro e, ao mesmo tempo tão supreendente. Lembrou-me um conto do Julio Cortázar chamado A autoestrada do sul. As personagens estão num tremendo engarrafamento nos arredores de Paris e não têm nome, são identificados apenas pelas marcas dos carros. Acertou, bro. Desculpe a demora em comentar. São as correrias da vida. Abraço.