terça-feira, 26 de março de 2013

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DEPOSTO SOBRE O ABISMO - 13



Eram duas da manhã e eu amaldiçoei a falta de porteiro daquela merda de prédio. Tinha alguém batendo à minha porta e por isso eu estava acordada, mal-vestida, descabelada. E puta da vida.
Quem é?, quis gritar interioranamente. Mas achei que me fingir de morta fosse a melhor escolha. Afinal, porra, eram duas da manhã. Se alguém queria açúcar pro cafezinho ou que eu tomasse conta do cachorrinho que fosse se danar.
Mas as batidas na porta eram insistentes. Um saco. E cada vez mais fortes. Xinguei em inglês com todos os palavrões que aprendi na época de faculdade, mas não foram suficientes, então comecei a xingar em português também. Puta que pariu, porra, caralho, buceta! Levantei contrariada, xingando em voz alta, me aproximei da porta e, interioranamente, disse pra madeira gasta e mofada:
–Quem é?
–Isabel.
Abri a porta devagar, porque vê-la naquele momento era quase uma solenidade. Eu sabia que, pra que ela estivesse ali, só poderia haver algum tipo de motivo solene. Afinal, ela morava na Tijuca, numa casa grande e rica, um marido pianista alemão e uma filha pequena. Afinal, ela tinha as pernas tortas, era pesada e mal andava. Então, abri com muita e vagarosa solenidade a porta, porque somente algo muito solene a teria levado ali.
Acho que ela entendeu. Porque, sem dizer uma só palavra, e o silêncio sabe ser solene, ela entrou no meu apartamento. Os passos tortos rangiam nos tacos de madeira. Estava frio lá dentro e percebi que ela sentiu, porque a minha casa, aquela que eu nunca tinha chamado de minha nem de casa, era muito fria, you know? Úmida e mofada.
Isabel andou até o meio da sala sem olhar em redor. Usava o vestido de flores de flamboyants. Pintada de sangue ela estava. Com as muletas e nada mais. Nem mesmo os documentos ou algum dinheiro parecia ter levado. Parou, então, de costas pra mim, que ainda fechava a porta, e disse:
–Me leva com você...
Pra onde?, eu quis perguntar, mas não precisei:
–Me leva com você pra um lugar limpo...
Quis querer abraçá-la, porque senti que ela sofria. Em vez disso, pra satisfazer à minha vontade de ter piedade ou carinho, fui até o quarto e peguei um cobertor de lã. Coloquei-o sobre as costas da Isabel, que tremia de frio na umidade do meu abismo, e a fiz sentar no sofá xadrez roxo e amarelo, que me parecia ainda mais duro e sujo e feio e velho depois de eu ter experimentado a mágica do sofá macio e limpo e belo e novo da Isabel. A Isabel me olhou fundo nos olhos, eu não quis desviar, como se fosse preciso dissimular que ainda havia magias, mundos secretos e rituais, like in our youth.
–Eu não quero a minha vida. – Quer trocar?, eu quase disse, mas achei importuno. Antes, tantos anos antes, numa outra cidade, num universo maior, nada era importuno entre mim e Isabel. – Me ajuda, porque eu só tenho você, Vitória. Eu só tenho você, Vitória.
Aquilo era um pedido. Um daqueles que eu pedia pra fazerem, porque eu ia atender. Mas esse eu não queria.
Eu não soube o que dizer e acho que a abracei sinceramente com piedade e carinho. Ela chorou muito e preferi não dizer nada, pra manter a altivez, ou o controle da situação. Depois de mais calma, ela baixou os olhos. Fitou as pontas dos meus dedos descalços e de unhas mal-feitas. E disse:
–Meu marido me trai desde os nossos três meses de casados. Quem sabe se antes, quem pode garantir? – E Isabel levantou do sofá. Quis nunca ter telefonado. – Meu marido... (riso irônico) Eu nunca tive um marido. Ele sempre metido com aquele piano maldito, viajando, tocando. Eu não suporto mais aquele piano. O meu único descanso é quando os meus vizinhos começam a ensaiar. E mesmo assim quando ele não está em casa, porque, quando está, passa o dia reclamando. Diz que aquilo não é música, já foi até bater na porta pra reclamar do barulho.
Ela parou. Eu agradeci por aquele silêncio, mas não falei nada. Por um momento muito curto, cambaleei a cabeça tonta de sono. Tentei me manter acordada repetindo a mim mesma que eu só estava acordada por culpa minha. Tudo culpa minha. Eu nunca devia ter ligado.
–Eu não quero mais ficar naquela casa. Eu quero o mundo, eu sempre quis o mundo. Eu sempre quis voar, mas as minhas asas são tortas... – E ela me olhou fundo nos olhos de novo.
–Eu sempre quis ser como você, Vitória.
–Eu sei, decidi dizer, acho que só pra dizer alguma coisa. Aquele drama b conhecido tão típico dela já estava me enchendo o saco. Não era isso o que eu queria de volta na Isabel.
–Você é muito forte, parece poder tudo, saber de tudo. Eu queria tanto a sua vida.
“Eu quero a sua vida”, me lembrei naquele momento.
Foi isso o que ela me pediu quando eu disse, lá em Paraty, muitos anos antes: faz um pedido que eu atendo.
Ela dizia que eu era estranha, e eu gostava disso porque era exatamente essa a intenção. Estávamos na escola nesse dia e ela nunca foi muito boa na escola, nem muito ruim. Acho que era por isso que ela queria a minha vida. Isabel nunca teve nada especial, extremo, grande. Ela era comum demais. Ela sempre tinha sido exatamente como todos, uma média, um padrão. O que a diferenciava eram as pernas tortas, um incomum ruim, era o que ela devia pensar. Enquanto eu era o incomum bom, porque a minha diferença era escolha minha.
Ela não gostava de ser apenas o padrão. Mas não tinha nenhum talento pra estar acima dele, nem abaixo, onde era o meu lugar. Mesmo que Isabel não acreditasse nisso.
–Quando a Vitória nasceu, pensei que ela poderia ser feliz, como você. – Tive vontade de rir, mas não. – Feliz como eu nunca fui. Achei que eu poderia fazer dela alguém forte, inteligente e confiante. Ela é tão bonita, como você sempre foi. Eu me orgulharia de ser uma mãe capaz de dar a uma filha a liberdade que você sempre teve. Eu seria uma mãe melhor do que a minha, eu seria. Eu nunca tive uma vida, Vitória. A não ser os momentos que eu passei com você... Porque era sempre a mesma desculpa, era sempre o você vai cair, Isabel, você não pode, você não sabe, você não consegue... Nunca me deram direito à liberdade, Vitória. Eu achei que pudesse ser diferente quando eu vim pra cá, pra essa cidade, mas acabei caindo na mesma armadilha. Saí da prisão da minha casa, da minha família, daqueles que roubaram a minha vida “pelo meu bem” e vim cair na prisão desse filho de uma puta que eu arrumei pra marido! Eu não suporto mais a minha vida. Eu quero fugir com você, pra sempre, pra nunca mais voltar, pra longe! Me leva, Vitória...
–Mas e a sua filha, Isabel? – Segurei a mão dela com força, mais do que eu desejava. Resolvi jogar o jogo e mergulhei na cena que a Isabel tinha ensaiado, talvez durante todos aqueles anos de distância, pra encenar pra mim. Com uma impostação cinematográfica, continuei. – Mas e a sua filha, Isabel? A Vitória...? – enfatizei meu nome acreditando que fazer isso era bom.
Isabel soltou minha mão num gesto revoltado. Levantou do sofá deixando cair o cobertor de lã e caminhou transtornada em cima das muletas. Achei que fosse soltá-las ou jogar longe uma delas. Ela se desequilibrou, mas logo retomou a postura. Devia ser o costume. Notei que finalmente tinha notado que as muletas não eram parte da Isabel.
–Olha, ela me encarou, não sei se com súplica ou revolta, eles me disseram que ia passar. Eles me disseram que com o tratamento ia passar.
“Vai passar, tu sabes que vai passar”, pensei.
–Eles me disseram que eu ia gostar dela, que com o tempo eu ia poder sentir o que uma mãe sente por um filho. Eles me disseram que ia passar. Mas não passou. Entende?
Silêncio. Por não ter o que dizer e com que quebrar aquela barreira antes de vê-la chorar novamente. Porque senti que ela ia se eu não fizesse alguma coisa, qualquer coisa, pra impedir, eu confessei.
–Não, eu não entendo.
Então ela jogou longe uma das muletas. Simplesmente empunhou uma delas e, com muita força e muita prática, como se fizesse aquilo todos os dias, arremessou-a longe. Vi quando a muleta passou raspando por cima da minha mesa, fazendo voarem todos aqueles papéis soltos que eu nunca ordenava. Por baixo deles, um velho caderno manchado, “Qual é o seu nome? Me diz o seu nome...”, “Vitória”. A kind of Matrix, a muleta voou lenta antes de bater na minha parede. Ufei de alívio. Centímetros ao lado começava o vidro da janela. Welcome to the real world.
E tudo isso tão tão rápido que, quando me voltei novamente à Isabel, ainda pude vê-la se desequilibrar (ou ela teria me esperado?) pra concluir a cena cinematográfica que ela tinha iniciado (um dramalhão no qual eu era a personagem secundária que segura a protagonista desmaiada?) e corri pra amparar Isabel antes que ela caísse. Ela caiu pesada nos meus braços – amparando a protagonista desmaiada, pensei. E, de olhos fechados muito apertados, ela me disse:
–Eu não gosto da minha filha!
Ou seria de mim?
–Eu não quero a minha filha!
Ou era a mim que ela não queria?
–Aquela criança maldita!
Ou era o meu nome a maldição?
Isabel se apoiou na outra muleta, foi se levantando, e sentou no sofá, de costas pra mim. Achei que ela estivesse com os olhos molhados, mas nunca tive certeza.
–Eu nunca tinha sido feliz, Vitória. Eu sempre quis ser o que eu não pude e nunca me deixaram ser o que eu quis. Nunca ninguém olhou pra mim sem piedade, mesmo que tentasse dissimular que me tratava como igual. Todo mundo sempre teve pena de mim...
Não quis sentar junto dela, porque achei que isso seria demonstrar piedade. Que era o que tinha me unido a ela, anyway. E ela nunca tinha notado que isso era metade do meu sentimento. Vitória, você é tão dissimulada, eu disse de mim pra mim mesma, e não me culpei.
–Até mesmo o Júlio, o Eduardo – ela se demorou no último nome. Aquelas vogais longas que me irritavam. E que dessa vez vieram com um tom de tristeza. – Só você nunca me olhou com piedade.
Quis não querer rir. Mas acabei querendo. E não rindo.
–Só você, até ele chegar. Ele me tratava como igual, ele me fez tão feliz, Vitória. Ele me ajudou, me levou pra casa, me pediu em casamento. Foi até Paraty, pediu minha mão pros meus pais. Tão brega, tão bom.– Quando o tom da voz dela mudou, cheguei a me assustar. A voz saía gutural. Pensei imediatamente em algum tipo de Exu Mark Jansen. – E então ela chegou, essa criança filha de uma puta! (Tive que me controlar pra não rir da ironia.) Ela deformou o meu corpo, olha o que eu me tornei. E agora ele não me quer mais.
Eu não disse nada e acho que Isabel queria que eu dissesse alguma coisa. Mas nada do que eu achava que poderia ser dito realmente deveria ser dito.
–Olha no que ela me transformou, Isabel insistiu.
Não culpe a menina, Isabel, eu pensei, mas nem cogitei dizer. Não adiantaria nada dizer, mesmo que eu cogitasse. Porque Isabel já havia culpado Vitória pela sua desgraça.
–É por esse homem que nunca te amou que você quer deixar a sua filha?
–Ele me amou!
Não, Isabel, eu pensava.
–Eu era jovem. Eu era bonita!
Não, Isabel, eu pensava.
–Agora eu estou velha, horrorosa e corneada!
Sim, Isabel, eu pensava.
Pensei que ela devia estar pensando assim: e me vem você falar de amor, Vitória? Você que nunca foi de ninguém, que nunca quis nenhuma raiz, que nunca teve dono, nunca teve lugar, nunca teve certezas, nunca se deixou pertencer, nunca, nunca amou ninguém. Pensei que ela podia estar querendo me dizer tudo aquilo. E que não tinha coragem. E que era por isso essa longa pausa silenciosa que agora se fazia. You loser, Vitória. Você nunca soube o que é amar. E, quando pensei que isso não era verdade, do fundo da memória pensei nele. Mas ele quem?
–Agora eu não tenho marido. Acho que eu nunca tive um marido. Ele tem outra, que deve ser bonita, jovem, talvez alemã, porque não? Ele só fala comigo pra perguntar da maldita Vitória, Vitória. Ele quer que eu cuide dela, que eu não tenha mais vida só pra cuidar dela. Ele não me deixa sair de casa se não for com ela. Ele não me deixa viver como eu quero, como eu gosto! Nem me deixava ouvir aquele LP do Queen que eu tanto gosto. – de repente senti falta daquela menina jovem que me imitava, aquela que tinha sido Isabel, maquiada de minha caricatura. Porque tudo aquilo já começava a me enjoar demais. E eu queria voltar pra cama, dormir, e acordar sabendo que ter ligado pra Isabel foi nada além de um sonho ruim. Mas ela continuava. Eu não queria mais ouvir. Até que ela fechou seu discurso com a velha e conhecida sentença: – A minha casa é uma prisão!
As she always said.
–Por favor, me leva com você quando você for embora...
Minha vontade de sair do Rio de Janeiro tinha morrido. E eu nunca tinha realmente tido certeza de ir embora do Rio de Janeiro. Quantas foram as vezes em que eu havia desistido só porque não tinha grana, tava frio, tava sol, a conjunção astral dos planetas na décima casa de Plutão não estava boa. Eu queria ir embora sempre, fugir pro Canadá ou pra puta que pariu, não importava, mas sempre havia uma desculpa pra eu continuar naquele apartamento. Como se aquela caixa de mofo se fechasse sobre mim dizendo: não, Vitória, você só sai daqui quando for a hora, quando eu deixar.
Eu quis dizer tudo isso, dizer que tinha cancelado a viagem, se houve alguma, que alguma coisa tinha acontecido, ou confessar que tinha sido só mais uma ideia estapafúrdia como todas as minhas. Mas só disse assim:
–Pra um lugar limpo.
Ela sorriu.
–Me deixa ficar aqui essa noite?
Eu ia dizer: quantas quiser. Mas tive medo de ela acreditar. E, naquela conjuntura, acho que ela teria mesmo acreditado. Afirmei com a cabeça e dissimulei sorrir de volta. Disse que ela podia dormir na cama, que podia dormir sem roupa se quisesse tirar o vestido, que estava no corpo o dia inteiro. Eu tinha cobertor bem quente, era muito frio naquele apartamento. Ela podia se cobrir com quantos quisesse. Eu só não tinha roupa pra emprestar, ela entendeu que era porque não ia caber.
Acomodei Isabel na cama, que era macia – na verdade muito mole, porque colchão mole é mais barato e o colchão que estava na cama quando fui morar naquele apartamento tinha puído uns cinco anos atrás. E eu não tinha dinheiro, casa própria, carro, computador, smartphone, televisão de LCD, mp7 ou 8 ou 9 ou tudo etc.. Eu não tinha porra nenhuma nessa vida.
E então fui dormir no sofá. Duro, rasgado, sujo e velho. Quis nunca ter telefonado. Muitas vezes quis nunca ter perdido o emprego. Quis nunca ter feito aquele pedido maldito pra mim, pro meu Papai Noel interior.
Isabel não conseguiu dormir. Me encontrou acordada observando da janela o dia amanhecer lá fora. Eram umas cinco da manhã, tudo era ainda de uma cor inexprimível. Ela deitou sua cabeça nas minhas coxas e olhou pra cima. Como um cão faz quando pede afago. Afaguei seus cabelos e fitei bem fundo aqueles olhos castanhos tão comuns. Tudo nela era tão comum. No sofá xadrez roxo e amarelo, eu afaguei os cabelos de Isabel. E do fundo da memória eu me lembrei de ter aberto os olhos naquele mesmo lugar, muitos anos atrás, e de ter visto aquele homem. Aquele homem que afagava os meus cabelos no sofá roxo e amarelo. Aquelas mãos de unhas roídas afagando os meus cabelos no sofá roxo e amarelo. Mãos daquele homem. Que eu nunca mais vi.
Pus Isabel pra dormir como nos velhos tempos: peguei o violão e comecei a tocar Summertime. Acho que ela chorou antes de pegar no sono. Ou apenas de sono lacrimejava.

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