[Satisfaz a tua fome, jamais a tua gula.]
O CASO DO
GALINHO
Perdoa, padre, porque eu pequei. O sô
sabe que eu tenho um grande apreço por um franguinho suculento e quentinho para
encher o bucho, e que de vez em quando até exagero, caio no pecado da gula,
padre, que não é um pecado assim legítimo de Deus, mas que é pecado da carne.
Pois aí é que entra minha desgraça, e tudo se sucedeu ontem pela manhã, na hora
em que o sol ainda fica escondido pelo mato alto lá por detrás do brejo. O sô
sabe que pra homem simples assim como eu todo dia é dia de lavoura, e que eu tive
a felicidade de me arranjar nos alagados com o arrozal. Nessa época de chuva fica
tudo verdinho, verdinho, e dá até gosto de ver o queixo caído do Tião Pimenta
naquela cara vermelha de inveja dele. E pode esperar, padre, pode esperar que
logo mais chega o Tião aqui pra declarar culpa do pecado da inveja. Que também
não é legítimo de Deus, mas se for tomar como verdade – e é verdade mesmo! –
que eu tenho por esse arrozal quase o mesmo apreço que pela Rosa, ah!, então é
pecado legítimo cobiçar mulher do outro, e ele anda há muito cobiçando minhas
duas. Mas então, sô padre, foi ontem mesmo que eu passei na casa de Josué a
caminho do arrozal, e o Tião estava por lá exibindo o franguinho novo, meio
pinto meio galo, uma cor bonita que só vendo. E se dizia orgulhoso do bicho,
todo cheio de brilho nos olhos, e mostrava a espora quase madura e o peito todo
estufado do galinho. Ainda, pra completar a exibição, pediu pro bichote dar uma
volta, e foi que o danado fez um círculo todo! Foi só Tião dizer ‘anda, praga!’
e as pernas magrelas do bicho desembestaram pelo quintal do Josué e depois
pararam do lado do dono que se ria todo de satisfação. E olhe, padre, que eu
juro que foi juntando gente pra ver o galinho novo e até eu parei, mesmo não
querendo nada com Tião que é um invejoso das coisas dos outros, mas parei lá de
tão bonito era o bicho. E naquele dia nem consegui trabalhar direito no arrozal
de tanto que as perninhas do galo sassaricaram nos meus pensamentos. Eu juro,
padre, que o tal não saía da minha cachola! Parecia coisa ruim, sabe, e eu até
pensei que o Tião Pimenta é que tinha feito algum trabalho no bicho para que eu
me perdesse dos cuidados da lavoura. Fui pra casa com a orientação dos
pensamentos meio atrapalhada, até fiz a estradinha da casa do Josué, mas a
única coisa que tinha lá era o rastro do galinho na terra batida. Chegando em
casa, era o sorrisão largo de Rosa que me esperava na porta, os cabelos presos
dentro do lenço de musselina. Ela enxugava as mãos no avental florido, que não
é bonito não, padre, mas amarra assim a cintura dela como num abraço, e ela
continua linda e faz o avental velho parecer até um vestido de domingo. Pois
Rosa me colocou pra dentro e serviu a sopa de batata com quiabo, mas eu só
fazia pensar no franguinho do Tião Pimenta, e foi assim até depois de três ou
quatro tragos de aguardente para endireitar a digestão. Não vi nada, padre,
nada de Rosa ou de novela, dormi feito um bebê. Mas só até de madrugada, quando
no meio dos grilos eu ouvi o som do galinho. Porque como o sô sabe Tião é quase
vizinho ali do meu sítio, tanto que de vez em quando o danado vem perto da
cerca só pra se embestar para o lado da Rosa, mexendo todo no bigode ensebado
daquela cara vermelha. Pode ir anotando aí, padre, umas ave-marias e uns
pai-nosso pra esse cobiçador de posses alheias! Mas deixe contar qual foi o
pecado, que até agora eu fui todo santidade nessa história. Como o bicho não
saía dos meus ouvidos, resolvi eu sair de casa. Fui andando no meio do mato,
descendo o caminho do brejo que era de onde vinha o som daquela coisa que tinha
me deixado meio atrapalhado das ideias. Foi então que vi o galinho andando de
um lado pra outro perto da casa da Dona Djanira, mas ninguém saiu pra ajudar o
pobre coitado não. Estava sozinho o diabo, e mais eu um tanto longe. Quando o
bicho me viu foi um tanto estranho, padre, porque ele foi se achegando, se
achegando cada vez mais. E os olhos dele eram meio esquisitos, parecia que o
danado sabia que era um galo bonito de homem grande babar adoidado. Naquela
hora o sô não sabe o que me deu. Nem eu sei! Agarrei o galinho e comi. Comi ali
mesmo, e o bicho nem gritou, só ficou me encarando com aqueles olhões
arregalados donde refletia a luz da casa da Dona Djanira. Então eu corri até
brejo pra me limpar dos líquidos do galo e voltei a dormir junto de Rosa, até
que acordei hoje com o alvoroço que vinha dos lados do Tião Pimenta. Todo mundo
desembestado, correndo de um lado para o outro, trombando testa com testa. Rosa
foi até lá e voltou dizendo que era alguma coisa ruim que havia se sucedido com
o novo menino peão. Mas disso eu já não tenho grandes conhecimentos para lhe
esclarecer, padre. O que eu sei é que acordei pra lá de bom, e até agora não
ouvi qualquer assuntado sobre o franguinho novo do Tião.
Mariela Mei é poeta e escritora. Bloga em gracadesgraca.com
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2 comentários
heheh coisas que só acontecem em interior... q história doida hem? mas mto boa! a linguagem coloquial, os tons de mistério e a grande transgressão do confessador... o padre devia ta se tremendo todo dentro do confessionário rs.
Beijos,
Pablo.
heheh coisas que só acontecem em interior... q história doida hem? mas mto boa! a linguagem coloquial, os tons de mistério e a grande transgressão do confessador... o padre devia ta se tremendo todo dentro do confessionário rs.
Beijos,
Pablo.
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