Como uma pedra eu dormi toda aquela tarde. E como uma pedra tivesse sido
arremessada nela, minha cabeça doía. Era ressaca. De novo. Gosto de vômito na
boca (de novo), misturado ao gosto de álcool (de novo), de fumo (de novo). E do
Eduardo (do Eduardo, enfim).
Depois que ele foi embora, dirigindo o Siena vermelho que sumiu na
esquina por trás dos prédios, o dia começou a amanhecer numa terça-feira úmida
e morna do fevereiro do Rio. Ventou, choveu, depois o sol, eu deitada no sofá
duro, velho, rasgado, eu vendo tudo isso com muito sono e nenhuma vontade (de
dormir, de estar acordada, de pular da janela, de comprar uma bicicleta) além
de ter o Eduardo.
Eu lembrava do Eduardo e isso me enjoava. Eu não queria comer nem dormir.
Eu não queria não comer, não dormir. Eu só queria me lembrar. Aquele beijo de
feijão. A barba no pescoço. O estalo na orelha enquanto subíamos no elevador.
Eu fechava os olhos pra me lembrar, não pra dormir. E por isso fui caindo no
sono até dormir, enquanto, naquele ponto devaneante entre o sonho e o real, eu
concluía com tanta certeza como eu nunca tinha tido acordada, como só naquele
estado devaneante eu era capaz de ter, que o Eduardo me amava (isso eu já
sabia), que o Júlio me amava (isso eu já sabia), que o Eduardo odiava o Júlio
porque o Júlio me amava (isso eu já sabia), que a Isabel amava o Eduardo (isso
eu talvez soubesse) e que eu só tinha amado uma vez, muito tempo atrás, num
lugar com luzes foscas, música alta, em Paraty (essa era nova). Dormi.
Acordei.
O telefone berrando. Era ele, era o Eduardo, tinha que ser, tinha que.
Enjoo, ansiedade, expectativa, coração pulando no peito, eu pulando do sofá,
atendendo ao telefone, dizendo:
–Alô?
O som agudo do aparelho dando linha. E
o grito irritante continuando.
Damn it!
De onde? De onde? De onde está vindo
esse barulho do hell!? Um som repetido, rasgado, cortante, serrando a minha
cabeça dolorida em duas metades duas vezes mais doloridas. E eu xingando em
inglês, em português, em turcomeno, em russo, em sírio-aramaico-quilombola, em
língua do pê (pêmer-pada, pupu-pata-pêque-papa-piuriu, paca-para-polho!!!) com
a dor incessante que aquele ruído me provocava. Eu ainda estava dormindo, foi a
única conclusão a que eu consegui chegar naquele momento. Desisti de procurar a
fonte do barulho e fui olhar as horas no meu rádio-relógio de números verdes
sobre o fundo preto. Cinco da tarde. De repente, clareza: era o interfone!
–Pronto?
...
–Claro! Claro! Claro! Sim! Sim! Claro!
...
Enjoo, ansiedade, enjoo, alegria,
enjoo, corri pra janela, enjoo, o Siena vermelho estava parado numa vaga da
Riachuelo, enjoo, nove andares entre nós, enjoo, o Eduardo tinha voltado!
Ele... veio... me... ver!
Enjoo...
Então pensei na Isabel. Eu não queria
pensar nela, mas acabei pensando. Eu também não queria a Isabel em redor, junto
de nós, de mim, do Eduardo, naquela quase noite de uma terça quase perdida.
Também não quis que a Isabel visse o Eduardo e ficasse olhando pra ele,
insistentemente até se ela pegasse no sono no meio da conversa. Eu não queria
Isabel, de jeito nenhum, e posso citar agora todos os motivos mais aceitáveis,
e os menos aceitáveis também, pra não querê-la. Eu usaria qualquer desculpa
naquele momento, eu faria qualquer coisa. Desde que eu não fosse obrigada a ver
a Isabel.
Cheguei a ter medo quando olhei em
redor. Pra esquerda, isso que eu sempre confundo com a direita, depois pra
direita, que eu sempre acho que é a esquerda, olhei pra frente, pra trás. E não
vi a Isabel.
Não quis vasculhar o resto da casa
porque sabia que, em algum lugar, eu ia ter que encontrá-la.
E quis sair dali muito, muito rápido, pra
que a Isabel não aparecesse.
Então passei as mãos nos cabelos
despenteados e eles continuaram despenteados, calcei os chinelos velhos de sola
tão gasta que eu podia sentir as imperfeições do chão e, desse jeito
mendicante, virei a maçaneta da porta, que estava aberta porque eu devia ter esquecido
de trancar noite passada, e saí. O mais rápido que eu pude. Pra Isabel não me ver.
E tranquei a porta atrás de mim. Pra Isabel não me seguir.
Não lembro se eu tinha um plano
qualquer naquele momento, enquanto eu terminava de girar a chave na fechadura e
ia na direção do elevador. Mas qualquer coisa que eu fizesse teria o único
propósito de levar o Eduardo pra longe daquele apartamento, a caixa de mofo,
onde eu tinha encarcerado a Isabel.
Cruzei depressa o corredor. O Eduardo
já devia estar chegando. E encontrei na porta de madeira do elevador um bilhete
escrito à mão em pilôt azul: enguisado, favor ir discada – as letras, primeiro
garrafais, diminuindo conforme a constatação de que o espaço do papel era
pequeno pra toda a mensagem.
O elevador vivia mesmo quebrado. Eu
ficava puta com isso, porque, quando eu ainda tinha o emprego que eu já não
tinha mais, o elevador só enguiçava nos dias em que eu saía mais atrasada de
casa. Só pra eu chegar ainda mais atrasada ao trabalho do que eu já chegaria. Mas
dessa vez eu tinha gostado da notícia. O elevador quebrado! Que beleza! Me
abriu na boca um sorriso idiota. O Eduardo, afinal, não veria mesmo a Isabel.
O sorriso morreu jovem na minha boca.
O Eduardo provavelmente não me veria também. Ele não subiria nove andares por
minha causa, eu não era tão importante. A essa hora, ele já devia estar dentro
do Siena vermelho, talvez até longe dali. Deu vontade de sentar no primeiro
degrau da escada, que nem namorada adolescente esperando uma prova de amor:
sobe os nove andares por mim a-go-ra! Mas eu não tinha pedido nada ao Eduardo,
nem tinha por quê e, mesmo que eu tivesse pedido, ele também não teria motivo
pra atender. Ele não me devia nada. Eu não era nada na vida dele, ele que não
me via tinha vinte anos...
Mas...
Ele me amava tinha mais de vinte
anos...
Desde que o mundo ainda não nos
espantava, porque ainda não tínhamos mais de vinte anos.
Achei que essa era a conclusão mais
certa a se chegar: o Eduardo me amava, ele subiria nove andares por mim. E em
pensar isso, saí quicando pelos degraus, nove andares a fio, buscando achá-lo
no meio do caminho pra impedi-lo de chegar ao meu apartamento, caixa de mofo e
cela de Isabel.
Pouco acima do lance de escadas do terceiro
andar, eu achei o Eduardo. Parado, respirando fundo, apoiado com as mãos nos
joelhos, tronco encurvado pra frente. Pensei instantânea e desmotivadamente que
ele parecia estar esperando uma enrabada... ou se recuperando de uma. Ri desse
pensamento. Ele me viu e achou que eu ria pra ele. Ele tinha a sina de achar o
que não era. Se ergueu da posição em que tinha parado pra descansar, me sorriu
de volta. A barba negra, crespa, sobre a pele morena, ah!, no meu pescoço de
novo eu a queria! Dava pra ver a pele escura do Eduardo sob a blusa branca,
como as costas muito brancas sob a blusa preta de quem? Um flash fosco, a voz
de Freddie Mercury, Richie Valens, uma cama, dedos de unhas roídas nos meus
cabelos, muito tempo atrás. Sacudi a cabeça pra afastar o dejá-vu e sorri,
dessa vez pro Eduardo mesmo. Corri pelas escadas como namorada adolescente
ainda querendo fazer da vida uma cena de novela (porque tem horas em que a vida
só vale se parecer ficção) e abri os braços pra pular no abraço do Eduardo.
Ele me levantou. Eu gostei. Do abraço
dele e de ele ter conseguido me erguer. Pensei adolescentemente, com orgulho e
desafio: quero ver levantar a Isabel! O Eduardo não me aguentou muito tempo,
anyway. Me pôs no chão e riu dizendo:
–É o fumo! – e arfava, arfava, arfava.
– Que bom que você desceu. No nono eu morria!
Depois me cravou um beijo longo na
boca, gosto de dente recentemente escovado com pasta de hortelã. Tão
previsível, livro fácil de ler, ele tinha se preparado pra ir ali me ver e premeditado
me cravar na boca aquele beijo longo.
–Me leva pra longe daqui? Foge comigo.
Falei, acreditando que ele não
entenderia. Eu queria ir embora, actually, mas eu sabia que ele não fugiria.
Talvez ele fizesse alguma expressão de estranhamento, de medo, who knows? E
nunca aceitaria o jogo.
Me surpreendi quando ele respondeu:
–Pra onde?
–Pro Canadá.
Ele riu.
–Agora só posso te levar pra um passeio.
Mas a banda vai sair em turnê mês que vem. Eu levo você.
E como se houvesse parênteses
circulando a palavra (esses que dão emoção ao que está dentro), concluiu:
–Sério.
Sorri feito uma idiota, mas só me
achei idiota depois que o sorriso murchou. E começamos a descer os três
andares.
Lá fora, a Riachuelo sufocava, seus
prédios altos, o trânsito, a fumaça. Ele me ofereceu um Carlton, agora era
Dunhill. Peguei na hora. Tinha uns três anos que eu só fumava cigarro barato
pendurado na minha conta na padaria da esquina.
O Eduardo me abriu a porta do Siena
vermelho, mas não era um Siena vermelho o carro do Eduardo. Era um Voyage
vermelho modelo do ano. Agradeci o cavalheirismo e entrei. Um cheiro de
riqueza, de objeto novo e caro recém-comprado.Um aroma que eu não sentia tinha
tanto tempo e que não fazia em nada parte da minha realidade. Quis querer ter
raiva, não sei se de mim ou do Eduardo, mas não consegui. Nem sentir nem
descobrir de quem.
–Pra onde vamos?, perguntei sem querer
resposta. Eu queria estar sem rumo por escolha própria pelo menos uma vez na
minha vida que nunca tinha tido rumo nem quando eu quis ou precisei. Mas o Eduardo
não podia acertar todas nem entender sempre os meus jogos desmotivados. E ele respondeu:
–Ver o Júlio. Você quer?
Não sei se era mesmo sim. Mas foi o
que respondi. Os dedos de unhas roídas do Eduardo ligaram o rádio do carro,
touch screen de última geração. Master of Puppets começou a tocar. Quando
paramos no primeiro sinal vermelho, notei que o carro ao lado sacudia. O
motorista batucava empolgado nas pernas, balançando a cabeça pesadamente. Peace,
love and heavy metal, baby. Love all people in equal terms... and shake your
head. Não descobri que música ele
ouvia lá dentro, mas quis estar lá, no lugar dele, despejando os meus excessos
na música. Pra tentar seguir certo dali por diante. Mas nenhum caminho é caminho,
lembrei.
E quis que a cena acabasse.
Seja o primeiro a comentar:
Postar um comentário