sábado, 7 de dezembro de 2013

0

A Imortalidade e a Academia - Fragmentos de um discurso de posse

 “Qualquer pretexto é bom para nascer”... Assim Joaquim Nabuco iniciou o seu discurso na primeira sessão da ABL em 20-07-1897.
       
Será que o que vivenciamos e aprendemos neste pouco mais de 110 anos, nos permitiria ainda alimentar uma visão tão otimista da vida? Justificaria estarmos aqui hoje recebendo este, que pisa as areias desta ilha, e que vos fala, imbuído da responsabilidade de perpetuar a Academia Espírito-santense de Letras (AEL)? Digam-me quanto nos afastamos deste deslumbramento com a capacidade humana de criar, descobrir – desse potencial do homem para atingir os céus com seu gênio, tornando-se o centro do Universo. Um deus a servir-se do inesgotável entornado em seus pés?
       
Ouçamos o que nos diz o grande poeta Dante Milano, após a segunda grande guerra, em seu Salmo perdido:
Creio num deus moderno,Um deus sem piedade,Um deus moderno, deus de guerra e, não, de paz.
Deus dos que matam, não dos que morrem,Dos vitoriosos, não dos vencidos,Deus da glória profana e dos falsos profetas.
O mundo não é mais a paisagem antiga,A paisagem sagrada.
Cidades vertiginosas, edifícios a pique,Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,Deus não nos reconhece mais.
       Sim, é certo que muito ocorreu ‒ perdemos a inocência ‒ , mas nada foi capaz de alterar a condição primeira da existência consciente: o desejo de transcendência da alma.
       
E como reagir quando Albert Camus nos lança na face que “A razão não explica tudo, mas não existe nada além da razão”. Isso atordoa. E resplandece perante os nossos olhos – a Morte. O que faz a consciência com sua extrema maleabilidade, sua capacidade de se moldar perante o abismo? O que faz, como se justifica o indivíduo, em especial aquele mais cético e realista, aquele que se intitula um homem do absurdo, com sua existência lançada no rosto?
       E o poeta responde a Albert Camus:
Parte-se do esquecimento.Caminha-se para o esquecimento.Disso dou testemunho.
Tamanha consciência da morte vindouranomeia encantamentosem cada trecho de aurora.
E, se, em algum momento, falta ao punho o sustento,recolho-me ao verso que apoia.
Eis a dura lida que ao poeta condena.Mas apesar do tormento da finitude certa,tem no poema – pulsão de vida – rumo ao esquecimento.

       
Escreveu Sénancour, na carta XC de seu livro Obermann: “O homem é um morredor. Pode ser, mas pereçamos resistindo, e, se é o Nada o que nos é reservado, façamos que seja com justiça”.
       
E vos inquire o poeta:
De que adianta:o ser torto,os signos nos pés de Buda,os dedos verdes do menino Tistu,São Francisco e a beleza,o sem caminho, a pedra, o poeta,Zaratrusta ‒ o profeta,as tábuas da lei,a inteligência que medraas incertezas,o chapéu elefante do pequeno príncipe,os dozes asese o coringa crucificado,a maça desvendadasobre a cabeça do gênio,Armstrong e o queijo,nossos crâniosnas mãos de Darwin,o ser ou não ser do tablado,o primeiro passo nas savanas,o legado de Gandhi,aviões no horizonte,naves no interstício do espaçosob o som de Bach,se tudo é areiae me cobre?
       “Alteremos esta sentença”, nos diz Sénancour, de sua forma negativa para uma positiva, dizendo: “E se é o Nada o que nos está reservado, façamos que isto seja uma injustiça, e terás a mais firme base de ação para quem não pode ou não quer ser um dogmático”.
       
E assim teremos a resposta:
Adiantaos passos no sem sentido,no recorteda fotografiado Divino Planeta― que morre.
       “Escrever para não morrer, [...], ou talvez mesmo falar para não morrer é uma tarefa sem dúvida tão antiga quanto a fala”, nos diz Foucault. Desde os tempos da Grécia Antiga, a prática da leitura e da escrita tinha o caráter eminente de produção de kléos (Glória). Fala-se, ou escreve-se, na Grécia, para se produzir a glória incontestável dos heróis, e a sua propagação nada mais é do que um modo de imortalização, ou melhor, de perpetuação do herói, para além de sua própria morte.
       
Disse um acadêmico francês, Anatole France, que “os habitantes de certa ilha, perdida no Pacífico, comiam os velhos: nós fazíamos deles acadêmicos. Era um abrandamento do canibalismo...”
       
As academias são mais. São instituições de defesa mútua, contra o canibalismo natural, das novas gerações. Mas, acheguemo-nos a nossa ilha, e vejamos o que diz o grande cronista José Carlos de Oliveira: “No final, restam dois tipos de escritores: os que se reúnem na quinta-feira para tomar chá com biscoitos no conforto e segurança da Academia, com sua imortalidade garantida, e aqueles que tentam ser coerentes com sua postura na juventude, mas que no fim da vida se remoem, sozinhos, depressivos e insatisfeito.”
       
Mas a vida, apesar da insistência de nosso cronista, é muito mais irônica que as palavras. Em meio ao projeto de desconstrução do homem, de relativização da significância humana, surpreendeu-me e apaziguou-me a alma – algo que me gera temor por me encher de esperança e me causar certa letargia e atordoamento – a indicação para AEL. Sim, me iludi, pleno de esperança. Mas, novamente, se achegou a vida, palpável, quase arrebanhando minha mãe para a morte no mesmo dia em que fui eleito para essa Academia... É isso – a vida é mais irônica que as palavras.
       
E me sussurra novamente José Carlos de Oliveira: “Que bichinhos rancorosos, fazedores de monumentos nos quais os deuses transparecem enterrados, gritando sem parar que a eternidade, ai de nós, morreu para sempre!”
       
Mas o homem absurdo, é, e sempre será, inconcluso, e adentra-se na imortalidade transitória das letras. Ludibria os tempos por saber ser mais durável o papel que a carne.
Vida e morte são o continuar dos passoso ir e vir para não se sabe onde.A única diferença é que, no fim, não se poderá mais contar os passos....
       Toda Academia precisa de antiguidade. A principal função de uma Academia só pode ser preenchida a partir do acumulo das gerações.
       
E que função seria essa? A função de agregar as diferenças, pois nas diferenças se mostra efetivamente o humano. Os afeitos a essa “desinteligência essencial” hão de concordar, com prazer, ser essa a utilidade desta e de qualquer Academia. Em tempos de globalização – eu vos diria: de monótona globalização – é essa heterogeneidade a nossa única garantia de preservação de nossa integridade – da integridade de nossa língua e de nossa cultura. E isso nos cabe como tarefa.
       
Mas há os que podem indagar, e com razão: para tudo existe um peso, uma medida e uma visão distorcida.
       
Ora, como é possível conciliar opostos, conciliar vaidades, desejos mais ou menos conscientes de transcendência individual? E aqui vos fala o acadêmico recém- chegado, e peço perdão aos mais experientes por inserir uma acentuação talvez utópica a minha fala. É que como poeta acredito, como disse Ortega e Gasset, termos nossa individualidade, mas também somos fruto de nossa circunstância.
       
E a singularidade da circunstância atual do Mundo nos imputa a necessidade de que nossas trajetórias, por mais distantes que sejam, se encontrem para cumprir nossa finalidade enquanto Academia. A finalidade consciente de louvar e preservar a nossa cultura, nossa literatura, em detrimento de nossa busca individual de reputação literária, nossa árdua, e aqui digo novamente aos senhores, nossa consciente ou inconsciente negação da morte.
       
Há de se abominar o culto de ant’olho à tradição, ao antigo, obviamente, sem desprezar o que nos é base e esteio. Hão de se manter os sentidos voltados para o lado de fora, para o que urge, para o nosso tempo.
       
Um ditado popular diz que o jovem não sabe tudo que pode e o velho não pode tudo que sabe. Embora esta fala tenha suas aplicações óbvias, me inspira mais a assertiva de Joaquim Nabuco: “Os que envelhecem não compreendem mais o valor das ilusões que perderam; os jovens não dão valor à experiência que ainda não tem.”
       
Mas, senhores, “não há de se apressar nas coisas eternas, pois o contorno só interessa os apressados.
[...]

       
Nesse momento cabe um questionamento fundamental. Questionamento que me fiz e que muitos me fazem após a surpresa de verem um indivíduo treinado para seguir as evidências científicas, trilhar o caminho da poesia. A quanto dista o zelo do cientista do abuso apaixonado do poeta com a palavra?E agradeço a essa academia, a oportunidade de demonstrar o quão virtual é essa distante, e como pode ser plástico o ser humano.
[...]

       
Embora o patrono e os primeiros dois ocupantes da cadeira de número 2 sirvam para responder ao pesquisador e cético, àquele que busca, de maneira direta concluir uma questão, confirmar uma hipótese, resta estabelecer, ou não, a possibilidade de convergência de um olhar crítico e analítico com um olhar mais sonhador. Sem que isso signifique, necessariamente, um estrabismo físico ou psicológico.
       
Alguém que nos diga: cada manhã traz consigo uma nova geografia.
       
Sempre acreditei ser o homem um ser multifacetado; ser perfeitamente factível que um indivíduo se desdobre em desenvolver suas aptidões.
       
Vejo em Hilário Soneghet, o terceiro ocupante da cadeira 2 da AEL, um exemplo de homem com essas características. O poeta que propõe e demonstra que o cientista e o amante da palavra não colidem em um cérebro conturbado, mas se organizam e convivem, sem isenção da angústia essencial, em congraçamento.
       
E sigamos o poeta Hilário Soneghet:
POR ESTRADAS CURVAS
Convido-te a seguir a mesma estradaque tanto sacrifício me custou:a da honradez, meu filho, alcandorada,que meu saudoso pai sempre trilhou.
Nos embates da vida acidentada,minha alma muita vez periclitoue, se a conservo ainda imaculada,devo-o aos conselhos do teu velho avô.
Se quiseres fugir dos males todos,que a alma trazem sempre compungida,carpindo iras, maldições e apodos,
Imita o exemplo desse ancião dileto,traça uma linha a te orientar a vidae por estradas curvas segue o reto.
[...]
       Mas as cores amanhecem diferentes na tarde dos homens lúcidos. E o poeta enfrenta a imortalidade com um soneto que muito me tocou:
Por mais que me procure não me vejo,nem me encontro a mim mesmo em parte alguma.Se penso, logo, existo.” Mas desejosaber o que no mundo sou, em suma.
Serei, acaso, um astro sem lampejo,um rochedo no mar, serei espuma,ou lúbrico esboçar de doce beijonum tristonho jardim perdido em bruma?
Sou um pouco de tudo o que foi dito!A encarnação suprema da miséria,um pedaço de mundo no infinito!
Tudo o que me reveste terá fim.– Mas não sou eu que vivo na matéria.a matéria é que está vivendo em mim.
[...]
       E nos diz Athayr Cagnin, meu antecessor na AEL, em seu poema Velhos caminhos:
Caminhos que trilhei em minha infância,Não estranheis meu passo tardo, lento.O tempo ficou longe, na distância,Em que me tínheis, livre irmão do vento.
Daquele velho ardor só guardo esta ânsiaDe fugir, fugir sempre ao sofrimento.Porém jamais encontro a verde estânciaEm que retome o fôlego e o alento.
Agora que vos piso novamente,Pobre de aspirações e sem ideais,Fico a pensar em minha luta ingente:
– Eterna fuga ... Estradas sempre iguais ...A gente caminhando para a frenteE vendo que, afinal, vai para trás ...
[...]
       E retorno a Joaquim Nabuco em seu discurso de abertura da ABL: “a uma Academia importa mais elevar o culto das letras, o valor do esforço, do que realçar o talento e a obra do escritor. De certo, deixamos ao talento a liberdade de se apagar.” Nabuco nos diz que todo autor, mesmo o brilhante, deve ser primeiramente um soldado.
[...]

       
Senhoras e senhores, a eternidade é uma metáfora que já não me ilude. Mas como me disse certa vez um psicanalista e amigo “há de se relativizar a morte, de tangenciá-la”. E embora saiba que a esperança é uma simples questão de instinto de sobrevivência, todo artista persiste vasculhando sua particular caixa de Pandora.
[...]
       É possível, trabalhar e sonhar. É possível a convivência do cientista com o poeta. Pois a poesia começa assim: Emprenhar-se de miudezas;/deixando as mãos rendidas aos gestos costumeiros. /E quando a luz se aperceber, desmembrada/pelo estalo da palavra, / jogar-se nos trilhos/para salvar a flor.
       
Ponho definitivamente os pés nesta ilha, me instalo com minhas incertezas, disposição e sonhos.
       
Quanto ao poeta, este deixará para as ondas decidirem sobre a imortalidade de seu nome nas belas areias desta Ilha do Mel*.


________________________________________
* O primeiros habitantes denominavam ilha Vitória de Guanaaní ou "Ilha do Mel" pela beleza de sua geografia e amenidade do clima com a baía de águas viscosas e manguezal repleto de moluscos, peixes, pássaros e muita vida. Outro aspecto era a abundância de abelhas na ilha.



Jorge Elias Neto (1964) é médico e poeta. Capixaba, reside em Vitória – ES. Livros: Verdes Versos (Flor&cultura ed. - 2007), Rascunhos do absurdo (Flor&cultura ed. - 2010) e Os ossos da baleia (inédito). Participação: Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espiritossantense de letras – 2010) eAntologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Colabora com poemas em vários blogs e na revista eletrônica Germina, Diversos-afins e no Portal Literário Cronópios.
Blog: http://jeliasneto.blogspot.com
 E-mail: jeliasneto@gmail.com

Seja o primeiro a comentar: