sexta-feira, 28 de março de 2014

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DEPOSTO SOBRE O ABISMO - 21



Ela dormia. Mas ela quem?
Na minha cama, ela dormia, virada pro outro lado, feito criança com a boca aberta. Mas eu não via sua boca. Nem seu rosto. Ela estava em posição fetal. De costas pra mim.
E eu não me lembrava dela.
Levantei sorrateiro. A cabeça doeu, a vista escureceu, o mundo girou, o quarto também. Entonteci. Dei de cara com a parede. Crespa. Que me marcou o rosto como se com fundas cicatrizes.
Ressaca.
Da noite anterior, eu não lembrava nada. Julguei que tivesse sido boa por causa da mulher deitada de costas na minha cama. Ela devia ser bonita. Parecia bonita. Mas jovem demais. Outra criança adulterada.
Fui até o banheiro, encostei as mãos ao lado da descarga na parede e concentrei toda a minha energia. O jato esguichou pro alto e foi cair certeiro no ralo da pia. É. A noite foi boa.
Mas eu me sentia mal.
Stone cold crazy, eu pensava. Jaime, você está maluco, cara! Ela é a-pe-nas i-lu-são. Você teve uma bela noite de sexo, já não era sem tempo! Já estava mesmo na hora de usar as mãos só pra escrever. (Silêncio. Depois, em voz alta, a conclusão a que eu queria chegar,) Você... não traiu... ninguém.
Vitória... não é... ninguém.
(mas não cheguei.)
Tive medo de ir pro quarto e olhar fundo no rosto daquela criança adulterada deitada na minha cama. Não quis ir lá conferir se ela dormia com a boca aberta. Tive medo de não lembrar dela. Ou de ela não ter o rosto de Vitória. Eu queria que tivesse. E, enquanto eu pudesse, alimentaria a minha ilusão.
Fui pra sala escolher um vinil.
(Eu era uma pessoa antiga.)
Escolhi com cautela, mas com o coração apertado. Ansiedade. Uma hora aquela criança adulterada ia acordar. E eu não me lembraria dela. Não me lembraria do nome dela. Não saberia o que dizer a não ser a verdade:
Desculpe, eu não prestei atenção no cardápio antes de fazer o pedido. Qual é o seu nome mesmo?
Me senti mesquinho. Isso não foi novidade.
Depois, com algum esforço, consegui chegar a ter a esperança de que a criança adulterada tivesse ficado tão bêbada quanto eu e acordasse com uma ressaca tão grande quanto a minha. E uma amnésia ainda maior.
Isso não me acalmou.
Richie Valens estava mal-colocado entre os vinis, meio jogado pra fora da estante, com um olho olhando direto pra mim. Fui ajeitar. Ajeitei. E só depois o tirei de entre os outros e pus na vitrola. C’mon, let’s go, little darlin’ começou a tocar.
Aspirei o perfume da sala.
Não era o perfume da minha sala.
Porque eu, como ser tão solitário, só deixava o meu cheiro nas minhas coisas.
Eu não tinha ninguém. Que ligasse o som alto enquanto eu ainda dormia. Que tirasse os discos da ordem, as coisas do lugar. Pra chegar da rua cheirando a perfume barato. Pra sair do banho cheirando a creme de pentear. Pra chegar da praia cheirando a filtro solar. Eu não tinha ninguém. Pra me olhar. Pra me cheirar. Pra eu olhar e cheirar também. Nada meu tinha mais do que o que era meu. O meu perfume, meu amaciante sempre da mesma marca, meu cigarro sempre da mesma marca, meu corpo, sempre a mesma carcaça, cheia de marcas. Com o mesmo cheiro.
E pensar assim me deu um grande vazio. E a casa me pareceu um grande mar muito vazio. E nos meus móveis, da minha sala, na minha casa, não era o meu cheiro que eu sentia. Mas o cheiro de um grande mar. Regiões abissais como os olhos dela. Mas ela quem?
Ela quem?
Vitória!
Corri pro quarto planejando me internar no dia seguinte. Dando, é claro, essa distância de um dia pra ajudar na minha própria desistência. Atravessei o quarto e cheguei ao outro lado da cama, que dava pra parede, pra onde aquela criança estava virada.
E a olhei.
Tive vontade de chorar. Mas um sorriso idiota me cruzou os lábios. E quando notei que eu sorria, uma lágrima rolou. Sentei ao lado dela, devagar, pra não quebrar o ritual. Não quis acordá-la. Passei meia hora ou mais, acho que mais, olhando pra ela idiotamente, apenas contemplando a minha criação. Não quis saber se estava louco. Concluí que estava. E não me importei. Tive medo de ela acordar e falar e a voz não ser de Vitória. Tive medo de ela acordar e abrir os olhos e os olhos não serem de Vitória. Tive muito medo de ela não ser Vitória. Então quis tocá-la.
De vagar, coloquei meus dedos de unhas roídas fundo no meio de seus cabelos. Acarinhei seus cabelos. E isso me pareceu trazer à tona alguma coisa de um passado que não aconteceu. Eu olhava pra ela, pros meus dedos de unhas roídas bem fundo no meio dos cabelos dela. E a sensação de já conhecer vinha chegando, again and again and again and again. Como em cada minuto dos meus dias desde que ela tinha emergido do meu mergulho junto com a menina que eu tinha tirado do mar. Desde que comecei a escrever a vida dela, de Vitória. A tentar arrancá-la do abismo de mim. Desde que Vitória chegou, e me levou a paz que eu já não tinha. Desde então, a mesma sensação (rima pobre). Uncanny strange dejá-vu.
Quase cheguei a lembrar. Quase, quase. C’mon, let’s go, let’s go, let’s go, little darlin’. Quase cheguei a lembrar. Quase, quase. Quase lembrei do passado que não existiu. Quase. Antes de ela acordar.
E ela acordou.
Olhos verdes ela tinha. Fundos. Sem alma. E muito vivos. Vivos como eu nunca tinha sido antes dela. Vivos como sem ela eu nunca poderia ser. Vivos como eu tinha sido apenas na noite passada, que me voltava à memória pra me dizer que tinha sido boa. Mas que não se prende um dragão.
Olhei fundo nos olhos verdes fundos dela. Quis ir fundo dentro dela. Quis que ela ficasse ali pra sempre, que fosse só minha, e ela sorriu.
Um sorriso aberto.
Completamente nua sobre a minha cama, seios pequenos e brancos, que rodavam, como tudo, como o mundo. Ressaca. Paixão. O sol entrando pela janela, vindo bater sobre seu corpo jovem que brilhava na luz. Foi então que a música mudou.
We belong together for eternity. Quis tanto acreditar. E precisei dizer:
–Você parece tanto alguém que eu conheço.
–Quem sabe a gente não se conhece – ela brincou, sorrindo.
–De outras vidas, talvez.
–Ou de outras mortes.
Silêncio. O último eco daquela voz abissal ricocheteando nas minhas paredes até se unir ao vinil arranhado na sala.
–Vou trocar – eu disse pra quebrar o silêncio a tempo de não cair na loucura de chamá-la de Vitória, esse que eu queria que fosse seu nome, mas que não devia ser.
Ela me segurou pelo cós da calça e impediu que eu me afastasse. Dali. Dela, talvez. Eu estava sem cuecas. De um golpe só, a calça cedeu. Me desequilibrei com o puxão e caí sobre ela. Sobre Vitória. Aquela que eu desejava. E, porque a desejava, sem pensar a penetrei. Com força, uma, duas vezes, muitas vezes, entre gritos, entre gemidos e suspiros. Eternity, eternity, eternity, dizia Richie repetidamente na minha vitrola. Vitória, Vitória, Vitória, eu dizia repetidamente sobre ela, dentro dela, minha voz misturada à de Richie e aos gritos e gemidos e suspiros de Vitória, eu queria acreditar que era Vitória, reverberando entre as paredes do meu quarto. E eu a invadia, insaciável, mais forte, mais rápido, mais fundo. E eu a amava, insaciável, for eternity, eternity, eternity. E eu a queria, insaciável, for eternity, eternity, eternity. E então ela pediu faz-um-pedido-que-eu-atendo. E eu fechei os olhos e comecei a repetir junto com Richie no rádio eternity, eternity, eternity, até que só restaram o branco da minha pele sobre ela e o branco de dentro de mim sobre a pele dela, e eu cansado, recostado ao peito dela. Tão aliviado, tão confortável, tão feliz. At last time. E fim.

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