terça-feira, 30 de setembro de 2014

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COTIDIANO





Abriu a boca e engoliu o dia. Mais um. Era sempre assim. Engolir um dia... por dia. Levantou. Olhos de buscar a noite e suas impossibilidades no dia. Olhos de ver intensidades além da fina possibilidade real. Da cama. Da casa. Inchados olhos de se fartar de absurdos, improbabilidades... Sonhos?
Fora da cama olhou o corpo. Não era um outro corpo. Era o seu. O formato. A forma do corpo. O peso do corpo impresso no colchão, nos travesseiros, cobertores, lençóis... o peso do corpo impresso no quarto, na casa, na rua, na cidade, no país e no mundo... Sorriu. Não... Apenas uma careta.
Uma careta pensou... Uma máscara. No espelho, boca cheia de pasta de dentes escorrendo... Seu corpo não suportava muita coisa... Expelia tudo, cuspia para o exterior qualquer coisa que tentasse permanecer... Uma máscara. Na lâmina fia do espelho enfiou a mão e apanhou. Funcionário público. Sabia que tinha outras possibilidades. Várias eram as máscaras guardadas, estocadas na caixa do espelho. Mas a primeira que apanhava era a do funcionário. A água acalmou a rebeldia e o desleixo dos cabelos. Um pente  coordenou os fios, as linhas. Retas, em filas. Lisas. Sobre o casco, sobre o cérebro. Penteado. Risco no meio. Dualidade. Sabia disso. Forma de propor uma saída. Pedido de ajuda? Marcação do duplo. Explicitação da impossível unidade humana?
Alguns colegas zombavam. Não se importava. Com nada. Não sabia ele que as linhas eram mais que meras linhas. Significavam? Dividido. Dois. e mais. E muitos. Não sabiam. Escondiam suas linhas, suas marcas o mais que podiam. Tinham medo de expor seus vários corpos, seus pedaços?
Afinal não escolhiam suas máscaras diárias para enfrentar o dia. Afinal não engoliam o dia. Como Cronos. E por ele também eram devorados? Não sabiam?
E o que importava?
Sentou-se à mesa. O pão e a manteiga. E a solidão.
Mas não era a solidão dramática do corpo que em desespero anseia o outro e sofre as conseqüências dessa ausência.
Mas o silêncio. Mais o silêncio. Denso. Silêncio de cortar com faca. Em fatias, em roda grandes. A televisão desligada. O rosto. Na TV. Seu rosto. Comendo o pão e o silêncio. Maxilar em movimento ridículo. Vida. Ridícula.
Respirou fundo. Parou frente à porta. Dúvida. A rua era selvagem, perigosa. Mortal. Já não estava mais acostumado ao risco.
Abriu. E um fluxo de delirante de som, luz, odores, gritos, rostos, cores, movimentos, toques, palavras, objetos invadiu a casa e o corpo. Seu corpo. E o dia começou.

Seu lábio expressou algo próximo a um sorriso.  

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