terça-feira, 28 de agosto de 2018

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Refeição

   
<< Refeição >> (de Milton Filho, por Jorge Xerxes) é derivada da arte culinária, uma tentativa de disposição alternativa dos ingredientes de << Nacos >>, livro de poesias, Milton Filho, 168pp., ISBN: 978-989-52-1240-8, Chiado Editora, 2017. Uma experiência de ressignificação dos sabores num prato balanceado dos nutrientes – carboidratos, sais minerais e proteína humana. O equilíbrio proposto nessa síntese, porém, é uma farsa. Porque tudo é movimento quando se trata de alimentar as ideias. Tudo flui, é mastigado, é digerido, é excretado. Mas a essência, a essência é a mesma. A quintessência: << Luz >> intangível. Estamos distantes de apalpá-la.
   
<< Refeição >>
de Milton Filho, por Jorge Xerxes
   
Não componho poemas, poesias e
Todas essas delicadezas que, vez ou outra,
Me rodeiam.
São elas que transitam em mim,
Abrindo a alma e a face em sulcos profundos.
À maneira das serpentes,
Rastejamos sinuosamente,
A diferença é que
Fazemos isso na vertical.
Morremos à mingua de nós mesmos.
Nada obstante, sou muito grato
A essas dores, elas me colocam
Diante dos degraus e me obrigam à subida.
E tudo ilude o homem atento
Porque a chave deste mundo
É essa dor que bem dentro sinto.
Não se dar conta do que é,
Eis o maior dos constrangimentos.
Há nisso uma filosofia para incendiários.
Quando digo te amo,
Sou incêndio me consumindo.
Imenso e sem fim,
Sem água e no resto de suas forças.
As estrelas expiam por nós,
Enquanto observamos a noite.
Um coração de látex resistente às ironias
E traições várias.
As ilusões exigem um corpo
A prova de bala.
Há poemas que não podem de jeito nenhum
Serem escritos ou mesmo declamados,
Simplesmente não podem.
Entender um poema
É entender um pouco de si mesmo
E isso, absolutamente, não é para qualquer um.
Temos essa indisfarçável inveja dos animais.
Das cobras não direi muito.
Elas não voam, mas nós já pousamos na lua.
Mas os dias são navalhas discretas,
Bem amoladas
E vão cortando fundo sem que se perceba.
Somos uns fundamentalistas
Abarrotados de ceras nos ouvidos.
Sim, o poema te emprenha pela nuca,
De surpresa, em qualquer posição,
Mesmo sentado numa rústica cadeira
Ou tomando um café da manhã.
Ao lado do teu cônjuge,
Uma sutil traição, que ninguém liga,
E redesenha esse triângulo de lados desiguais.
O poema te ama e te esquece
Com a mesma facilidade
Que tu, na estante, o abandonas.
O mundo agora é pequeno, querido Drummond,
Embora sua poesia continue maior.
Não é todo mundo que tem essa coragem,
Aliás, amar sempre foi uma coisa dificílima.
A morte virá e,
Segundo o mundo quântico,
Segundo Einstein,
Já aconteceu e nem percebi.
Agora topo em uma pedra e, enquanto sangro,
Agradeço e peço desculpas por importunar
O belo exercício solitário daquele cascalho.
Como é próprio das nuvens lindas e pequeninas.
Mas hoje chorei e foi muito bom chorar, desaguar as artérias,
O derramar sobre si mesmo esse tipo de mimo.
O que resulta dessa poesia,
Se for assim tão linda,
É essa esmola de ficar contente.
Sofrendo feliz a dor de parir cada vão momento,
Pelas frestas, fendas, deste que se dá.
Página por página e cada livro composto é um Milton
Que não existe mais.
Por que não haveria um poeta compondo o mundo,
Esta poesia intraduzível?
Mas não eu, que não sou outra coisa senão um poeta
Que desconfia,
Com grande margem de acerto, não ser um poeta.
Minha filosofia é morrer para o sentido
Das coisas que não há sentido algum
Ou gentil, te aguarda nas estantes, se teu cérebro soluça
Na imaturidade.
Sobre a pedra fria em forma de cruz.
A poesia me sugere alguns caminhos
E isso, de certa forma, me faz querer ser melhor.
Pelo sim e pelo não,
Vou manter minha postura de educado.
Mas antes que a morte me leve,
Vou tirar algumas dúvidas.
A este corpo prometido aos vermes.
Sob o sol causticante das ideias.
Iluminando o resto claudicante do meu pensamento.
Com o coração pejado de amor e dívidas.
Nem mesmo toda a força
De um belo nariz adunco.
Nada pode garantir que amanhã mesmo
Eu não esteja mais aqui.
Não amamos a altura de sua graça.
Trincamos em punhos como frágeis pugilistas.
Com outras mil faces em cada folha
E um espírito arteiro colorindo cada letra.
Este cisco nos meus olhos
Arranca algumas lágrimas e todos irão pensar
Que ando triste e choro...
Se morro feliz ou não
É um outro texto.
De qualquer modo,
Este poema ainda não sei construir.
Este, por exemplo, estende a mão
Embora um aperto de mão, um abraço,
Esteja um pouco difícil nos tempos de hoje.
Mas, por timidez, deixo as mãos nos bolsos.
Risque a atmosfera cintilante.
Asas fazendo um cafuné em pleno ar.
Poesia não voa, é a febre que te ergue no espaço,
Sempre me esforço por lembrar.
Entregues ao mundo, nós a perdemos.
O que vês aqui, amor ou medo?
Sabes que és tu em qualquer escolha.
Teus olhos, uma espoleta
Disparando infinitas imagens,
A umidade de tuas retinas.
A depender da forja,
Da distância do seu fundo,
Da competência de criar um mundo.
Ah... esses poemas não podem ser capturados
Com míseras palavras.
Como escolher os mais belos paralelepípedos.
Denunciando o atropelamento de um poema distraído.
Ou dizendo, curto e gentilmente, siga.
Não sofra minhas fantasias infantis,
Porque meus poemas
São exatamente isso,
Ilusões, quimeras, fábulas de criança.
Cristais reverberando
Esta humilíssima poesia.
Nada obstante, move as plantas dos teus pés
Em direção ao outro que caminha também sem rumo e sem raiz.
Mas, em algum momento desses onde tudo calha,
Nos abismos da lucidez.
   
   


2 comentários

José

A sua delicadeza, Xerxes, supera minhas expectativas!... Sem palavras!...

Silvia Ferrante - Escritora

Delicado , profundo, certeiro ! Agradeço a oportunidade de poder apreciar ....