sábado, 19 de novembro de 2022

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Quero falar com Deus ou Zé da escada.

                              A escada, como o pé de feijão, é considerada símbolos fálicos e, penetrando nas nuvens, tal simbologia torna-se mais contundente. No entanto, quando sugeriram usar os feijões, ele prontamente os rejeitou. Primeiramente, foi o que disse, os feijões iriam demorar muito para crescerem, e depois, não via graça nenhuma em feijões mágicos, pois mágicas hoje em dia é impossível de existir. Sim e a mãe dizia: nada é impossível, o impossível é Deus pecar e mulher urinar na parede. Além do que não teria trabalho nenhum, a não ser, molhar os ditos cujos dos feijões duas vezes ao dia, o que para ele é maçante. Para provar sua necessidade em falar com Deus, teria que suar a camisa, fazer uma escada até o céu e falar com ele lá em cima, cortar a madeira, medir uma a uma e construir a escada. A princípio, começou timidamente a elaborar a ideia. Estudou mecanicamente os atos, as ações, como deveria ou como não deveria agir. A dinâmica, a inclinação, os graus de cada degrau, a velocidade do vento, enfim todos os parâmetros possíveis e impossíveis. Esboçado todo o plano físico e abstrato, foi à procura do material. Rodou a cidade toda, conseguiu encontrar o que precisava nos arredores, quase no limite entre uma e outra das cidades.

                              Estava quase desistindo quando seus olhos ofuscados pelo sol da tarde, fez com que virasse o rosto para esquerda e, foi, então que viu o que precisava. A loja pequena com os materiais espremido e esparramado numa confusão paranoica parecia mais um oásis no deserto da solidão. Cauteloso entrou. Coisa que nunca imaginou que existisse no Brasil, só em filmes americanos, ao abrir a porta, esta fez com que soasse o sino.  Foi tomado por uma nostalgia melancólica e suave de paz e ao mesmo tempo de fúria amarga. Percorreu com o olhar de investigador que entra pela primeira vez num local, demarcando o que lhe era possível, os ângulos, os materiais, as sombras, e, principalmente, o vendedor. Parado no meio da loja escutava o silêncio porejando vida em sussurros imperceptíveis vindo de todos os lados. Não se amedrontou, até sentiu um frêmito de prazer percorrendo a espinha. Nisso, vindo de um dos cantos embalado pela sombra, soou uma voz anasalada, meio tétrica, forte na dicção. Com uma torção de meio centímetro, virou a cabeça. Não viu nada. Apenas sombra. Aguçou a visão e, assim que seus olhos se acostumaram, viu uma figura magra, alta, com movimentos suaves, sem pressa, num estilo barroco, perguntando o que desejava. Zé que ainda não era da escada, puxou o papel do bolso e entregou para a figura bizarra acreditando que fosse vendedor. A figura alta e magra leu a lista de materiais prometendo que no dia seguinte, entregaria a mercadoria pedida.
                              Dois dias depois, Zé que ainda não era da escada, recebeu os materiais e, no mesmo instante deu iniciou a sua soberba escada que o levaria até o céu para que pudesse falar com Deus.

 

 

                              Zé levantou cedo. Não podia se certificar, mas achava que fora uma hora, e, se estivesse errado, afirmaria com convicção que fora duas horas mais cedo do que de costume. Tomou um café bem reforçado, pois tinha a noção de que trabalharia a manhã toda sem parar. Ao abrir a porta, o sol que surgiu violento, estava mais brando, o que facilitaria o serviço. Distraído, com boa parte do projeto avançado, tendo dois lances da escada pronta, bem medida, posicionada nos ângulos para contrabalancear com o vento e, se houvesse temporal, o que concluíra em seus estudos teóricos expostos em linhas, riscos e cálculos na prancheta lambida pela brisa suave da manhã, foi quando notou o homem tirando fotografia. Provavelmente um repórter de algum jornal, pensou. Como vazou o que iria fazer? Quem deu com a língua nos dentes? Se a notícia se esparramasse não trabalharia sossegado. E tido e feito. Não conseguiu impedir o sujeito. Nas edições da tarde dos jornais, saiu estampado seu rosto de fuinha cansado, tendo acima o título da matéria: Igual ao Zé do Burro, Zé da Escada quer encontrar Deus no céu e falar com ele. Lendo a matéria pode imaginar quem fora o delator, apesar de que não disse categoricamente que faria a escada e, muito menos, que guardasse segredo, mas mesmo assim, deveria pelo menos informá-lo. Seria o máximo de respeito por ele, era o que achava. Aquele merda do Osvaldo, apenas ele ouviu o que eu disse. Quando encontrar com ele vai ver só, disse martelando um prego.

                       Nem bem terminara o pequeno almoço, ouviu a campainha tocar. Quem seria? Para seu espanto, ao abrir a porta, uma enxurrada de flash, microfones, câmaras foi apontada para ele. E agora, Zé? O que eu faço, pensou amaldiçoando o amigo. Pediu silêncio. Com voz embargada pela raiva ou, humilhação? Pouco importava. Solicitou atenção e, pediu que o deixassem trabalhar que depois das dezoito horas daria uma entrevista coletiva, caso contrário, iria pedir reforço da polícia para expulsar todo mundo do seu quintal. E fotografia? Olhou para quem lançou a pergunta e, calmo, respondeu, sim, podem tirar, contanto que não atrapalhem meu serviço. Assim combinado, assim feito. Zé da Escada, como agora era denominado, trabalhou sossegado, durante seis horas sob chuva de flash. Vão gostar assim de fotografia na puta que pariu, pensou.

                              Às dezoito horas chegou e, como prometera, estava pronto para a entrevista. Depois de certo alvoroço, de um zum zum disparatado, com certa impaciência, a turba foi organizada. A primeira pergunta que lhe fizeram foi: porque ele estava fazendo igual ao Zé do Burro, se é que ele conhecia. Sim, conhecia, sim. Ele não estava fazendo e nem sendo igual ao Zé do Burro. Zé do Burro fizera uma promessa, isso é que é gostar de animal, disse logo em seguida, mas ele não fizera promessa, apenas iria lá em cima falar com Deus, sem intermediário nenhum, não precisaria de Santa Bárbara nenhuma e muito menos de Padre. Cansado de rezar, de pedir, sem ser atendido, tomou a decisão de ir lá pessoalmente falar com O Todo Poderoso. Isso é blasfêmia, gritou alguém. Talvez um religioso fanático, pensou. Não, não era blasfêmia, não visão dele não era blasfêmia. Apenas estava cansado de pedir e não receber nada. Mas como não está recebendo? Essas coisas não se vê, não sentimos, vamos transformando e mudando nosso modo de vida e do nosso pequeno mundo. Sim, até poderia ser, mas para ele isso era muito pouco, não era um São Tomé, mas precisava ver para crer.  Zé da Escada, não tem medo do pecado? Pecado? Quem disse que pecado existe? Pecado é fazer aquilo que acreditamos? Pecado é fazer o que gostamos? Não, não existe pecado. O senhor não tem medo da ira de Deus? Aí está outra pergunta que farei a Ele. Por que Ele é tão imperioso com o ser humano que tanto ama? Isso é ser Deus? Castigar a gente assim inescrupulosamente, sem piedade, como se fosse um vingador? Se eu amo uma pessoa não vou querer que nada de ruim aconteça a essa pessoa. E se Ele nos ama realmente, porque deixa que coisas terríveis nos aconteçam?

 


                              Isso é loucura! Você é um louco, sabia? Todos são loucos. Eu não sou! Claro que é. Se não fosse não estaria aqui lutando pela melhor reportagem. Não estaria empurrando, cotovelando, enfiando esse microfone no meu nariz. Somos todos um pouco loucos, paranoicos, esquizofrênicos. Se assim não fosse, ninguém concretizaria seu sonho. Você não luta, não faz sacrifícios, até vende a mãe, chega a matar, para realizar alguma coisa? Então, estou realizando um sonho, mas não estou matando, prejudicando ninguém. Sou louco, mas minha loucura é sã. Está indo contra princípios religiosos e morais. Baboseira. Religião foi inventada pelo homem para controlar o homem e suas riquezas, moralidade não existe na cabeça dos sonhadores, principalmente daqueles que realizam o sonho. Então quer dizer que você não acredita em Deus? Não disse isso. Mas disse que a religião foi inventada pelo homem para controlar o homem! E não foi? Além do que isso não quer dizer que eu deixei de acreditar em Deus ou não. Deus existe e se Ele for a nossa semelhança Ele é sado masoquista. Nisso a sirene da polícia se fez ouvir. Você vai ser preso, disse uma mulher loira que estava ao lado dele. O carro da polícia parou e rapidamente o policial desceu empunhando a arma. Quem é o Zé da Escada? Ninguém respondeu. O policial perguntou de novo. O rapaz de blusa azul e calça jeans, respondeu. Não o conheço. O policial perguntou novamente. O mesmo rapaz respondeu que não conhecia. O policial ia perguntar pela quarta vez, quando um barbudo saindo de traz do Zé da Escada, respondeu com a mão em seu ombro direito: seu guarda, este é que é o Zé da Escada. O policial se voltou para ele dando ordem de prisão. Espera um pouco seu guarda, porque estou sendo preso? Por perturbar a ordem pública e incentivar o povo a desordem. Vão me levar à presença de Pilatos? O que? Deixa para lá. Algemado foi colocado no carro que saiu com a sirene berrando histericamente.

                              Os jornais, a televisão, os blogs fuxiqueiros, os Orkut sensacionalistas, noticiaram aos quatro ventos o dia do julgamento de Zé da Estrada. O fórum estava cheio. Dando início a sessão, o Juiz ao interrogar o réu, não viu nele o arruaceiro perigoso como dizia a acusação. Feitas as apresentações, os advogados partiram para a primeira batalha, depois vieram às réplicas e treplicas e, por fim, fechando o espetáculo, juiz e jurados partiram para a votação. Para surpresa geral, o réu foi absolvido por cinco a dois. Ao sair do plenário, Zé da Escada viu o juiz fazer o gesto característico de quem lava as próprias mãos em água abstrata. Sorriu.

                              Noventa dias depois, Zé da Escada anunciou que a escada estava pronta e, que dali a dois dias estaria subindo para falar com Deus. Fotógrafos, repórteres, câmeras de televisão se postaram nos fundos da casa. Como Zé da Escada não noticiou a hora passaram a noite e a madrugada a postos, prontos para registrar a gloriosa subida. O sol começava a surgir, alongando as sombras entre o asfalto e as casas, quando ouviram um grito de: olhe, ele está subindo. Todos se voltaram para a escada, fotógrafos dispararam seus canhões, as câmeras de televisão interromperam a programação matinal e passaram a transmitir ao vivo, repórteres com suas vozes empostadas, tentavam transmitir o clima do momento em detalhes meios que exagerados. Por vinte minutos seguiram passo a passo os pés de Zé da Escada subindo degrau por degrau. De repente, saindo das nuvens, surgiu a mão de Deus, disseram quase ao mesmo tempo, pegou Zé da Escada pela mão direita e puxou o franzino corpo que sumiu entre as nuvens. Estáticos, silenciosos, parecia que o mundo tinha parado nos eixos. Não se ouvia nem o respirar de uma mosca. Foi então que ouviram outro grito vindo de dentro da casa do Zé da Escada. Correram para lá e, Zé da Escada estava morto e estirado em sua cama.
                              Quase um ano depois, quando o povo já estava esquecendo-se do Zé e sua escada tendo sido derrubada por um vento inesperado, começaram a ouvir que havia um médium, para os lados da zona lesta da cidade, fazendo milagres se autodenominando como Zé da Escada.

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