segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

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Pássaro noturno.


“Você me abre seus braços e a gente faz um país”, a voz rouca de Marina, audaciosa sensualidade de mulher liberal, soava nos cantos da sala causando sonolência. Esticou os braços para cima até sentir os músculos estendidos quase rasgando a pele. Os ombros reagiram, os nervos gritaram na dor do cansaço, a pele esticada mostrou a falta de movimento. Num repente, levantou-se e desligou o som, apagou a voz chata da cantora, se anestesiou no silêncio dos espaços.

Abrirei meus braços, voarei para todos os países que eu quiser, disse se aproximando da janela. No rosto o calor frio da manhã apagou o desassossego que o acompanhava desde o instante em que colocou os pés fora da cama. Nem o café quente, sempre reconfortante, deixara-o satisfeito. Em pequenos goles sorveu o liquido preto, a quentura escorreu para dentro do organismo indiferente ao que fazia.

Carros, buzinas, gritos, sirenes chegavam ao décimo andar abafado, uma sonoridade de desgaste revelando a agonia da humanidade. Escancarou a janela e recebeu os sons em seu ouvido, ampliando dessa maneira a capacidade de ouvir o silêncio vibrando em seus pedaços de vida.

Longo tempo ficou extático, braços abertos prontos para alçar voo, recebendo todo tipo de som que ricocheteava na pele perfurando seu sentimento musical. Firme, fixo e forte com os olhos extáticos na vivência daqueles instantes, soltou-se na profundeza da noite. Aproveitou a corrente de ar quente, se envolveu e deixou-se levar distante de onde estava.

Como se o remorso o espetasse, ou a angustia de ter se deixado para traz, ou mesmo, o que não queria admitir, a saudade de ser o que era antigamente, olhou por cima do ombro enquanto o vento desalinhava seus cabelos pretos. E entre os fios do cabelo, viu-se morto, em pé, com os braços abertos, a espera de algo, a espera de alguma coisa que já chegara e que não viu e, não vendo, como estátua ficou preso ao seu tempo para o resto da vida.

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