Para todos os fumantes, amigos e inimigos.
Acendeu o cigarro. A fumaça espiralou a cinzenta opacidade da baforada no ar
levando-o a pensar até onde chegara. Tinha chegado a aquela decisão não fora
por culpa dele, muito menos por algo que fizera. Reconheceu-se introspectivo
até beirando o perigo de se engolfar numa sombria e soturna solidão. Mas não se
importava. Olhando a fumaça do cigarro mal apagado no cinzeiro, achava até que
desejava a solidão, se fosse menos sombria quem sabe. Teria mais chance de
vencer? Seria isso, e involuntariamente acendeu outro cigarro. Era o último do
maço. Com cuidado, desamassou as partes amassadas, deixou-o bem certinho,
depois com cuidado colocou em cima da pilha que estava no canto da sala. A
pilha já estava quase na metade da parede. O que tinha de tão importante
naqueles maços vazios e empilhados naquele canto? É, o que tinha? É minha
coleção, ou será que ninguém teve uma coleção? Uns tem coleção de cachorros,
pedras, chaveiros, conchas, namoradas, e quinquilharias diversas. Ele tem de
maço de cigarros vazias. O que é que tem isso? Alguém poderá dizer que é
anormal. Pouco estou me lixando. O importante é fazer minha coleção. Apagou o
cigarro jogando no lixo já abarrotado de pitucas.
Na cozinha, bebeu café gelado. Procurou nos bolsos, não encontrou o maço.
Precisou ir à sala. Retirou um cigarro e enfiou o maço no bolso. Voltou para a
cozinha servindo-se novamente de café gelado. Pensou em fazer algo para comer.
Chegou à conclusão que não estava com fome, portanto não tinha necessidade de
preparar comida, apesar do relógio de parede marcar onze horas e quarenta
minutos. Introduziu o cigarro entre os lábios e puxou mais uma tragada. O peito
se inflou de ar acinzentado satisfazendo o vício. Foi tomado por uma excitação
um pouco descontrolada. Não precisaria de subterfúgios para se saciar.
Saiu para o corredor silencioso do prédio. Desceu até o térreo. Passou pelas
áreas de lazer e pelas salas de festas. Ela não estava ali. Encontrou-a
varrendo a área perto do deposito de produtos de limpeza. Sem dizer nada,
pegou-a pela mão e arrastou para dentro do depósito fechando a porta. Uma hora
depois, saia de lá, com pose imponente, dizendo nos gestos e andar: é assim que
sacio minha sede, não preciso de outras artimanhas, não sou fraco.
Quando pressionou o botão do elevador, sentiu-se esquisito. Uma comichão
na ponta do dedo, como se estivesse se esfumaçando. À medida que chegava ao seu
andar, a sensação parecia aumentar. Deu de ombros. Inalou um forte cheiro de
fumaça ao fechar a porta atrás de si. Não percebeu, ao largar o chaveiro em
cima da mesa que, ao entrar em contato com a madeira, o chaveiro se desfez em
fumaça. Foi então que decidiu fazer algo porque achou que estava com fome.
Preparou um suculento lanche com tudo o que era de direito. Mas ao colocar o
delicioso e gordo lanche na boca, se sobressaltou. Tinha gosto de fumaça de
cigarro. Tossiu como se acabara de dar uma longa tragada. A boca era só fumaça.
Soltou o lanche que ao bater no chão se desfez em fumaça também. Assustado
encostou-se a pia, mas ao contato com seu corpo, a pia também entrou em
processo de transformação. Horrorizado presenciou um a um dos móveis e objetos
do apartamento se desmanchando. E quando faltava apenas ele, não deu tempo nem
de correr para a porta. Foi tragado pela impiedosa transformação. No meio
da sala, ficou uma bola espessa de fumaça preta, compacta, flutuando, parecia
que procurava uma saída. Quando por fim, num surdo estouro a bola compacta
preta e espessa, explodiu lançando seu odor para todos os cantos do
apartamento.
Um ano depois, saia do elevador um senhor, baixo, careca, de óculos, falando
com o rapaz que o seguia.
- Vou te mostrar esse apartamento porque você
disse estar necessitando bastante. Como não consigo alugá-lo, prometi que o
deixaria fechado para sempre. Quem morava nele era um jovem como você, se dizia
escritor. Antipático, introspectivo, falava pouco, quase ninguém o conhecia,
egocêntrico, nada sociável, vivia a maior parte do dia trancado. Por sorte, era
bom pagador, nunca atrasou o aluguel. Todos os meses era batata, não faltava.
Chegava o dia, tava ele lá batendo na minha porta com o dinheiro do mês. Não
sei o que houve, aliás, ninguém sabe, contei para todos e ninguém entende como
aconteceu. Morava quase um ano, quando um dia o cara se escafedeu. É. Sumiu,
desapareceu. O cara levou tudo. O engraçado é que ninguém viu nada, nem
caminhão, nem ninguém descendo as escadas, a pergunta ficou no ar: como é que
ele fez a mudança? Então, ficou só esse cheiro insuportável de fumaça de
cigarro. Está sentindo? O apartamento é esse, não vou forçá-lo a alugar. Eu
sei. E pense que eu fiz o que? Pintei, mandei raspar as paredes, o assoalho o
teto, até ficarem só tijolos, foi passado uma tinta impermeabilizante, mas sabe
o que aconteceu? O apartamento ficou cheirando a novo um dia só, no outro dia
estava novamente com esse cheiro horrível de fumaça de cigarro. Não entendo.
Não vai ficar com ele, não é. Já sabia. Não, não tem que se desculpar, entendo.
Parece àquela história que virou filme, como é o nome mesmo? Ah! Isso mesmo,
1408, só que aqui é apartamento e não quarto de hotel, não é. Entendo,
não vai querer alugar, não é? Você não é o primeiro e nem será o último. Acho
que vou precisar vender, ou derrubar o prédio e erguer outro. Acho que só assim
eliminarei esse forte cheiro de fumaça de cigarro.
Fechou a porta e entrou no elevador sem ver que uma pequena nuvem de fumaça
cinzenta saia por baixo da porta.
Seja o primeiro a comentar:
Postar um comentário