quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

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O cigarro.

         Para todos os fumantes, amigos e inimigos.


Acendeu o cigarro. A fumaça espiralou a cinzenta opacidade da baforada no ar levando-o a pensar até onde chegara. Tinha chegado a aquela decisão não fora por culpa dele, muito menos por algo que fizera. Reconheceu-se introspectivo até beirando o perigo de se engolfar numa sombria e soturna solidão. Mas não se importava. Olhando a fumaça do cigarro mal apagado no cinzeiro, achava até que desejava a solidão, se fosse menos sombria quem sabe. Teria mais chance de vencer? Seria isso, e involuntariamente acendeu outro cigarro. Era o último do maço. Com cuidado, desamassou as partes amassadas, deixou-o bem certinho, depois com cuidado colocou em cima da pilha que estava no canto da sala. A pilha já estava quase na metade da parede. O que tinha de tão importante naqueles maços vazios e empilhados naquele canto? É, o que tinha? É minha coleção, ou será que ninguém teve uma coleção? Uns tem coleção de cachorros, pedras, chaveiros, conchas, namoradas, e quinquilharias diversas. Ele tem de maço de cigarros vazias. O que é que tem isso? Alguém poderá dizer que é anormal. Pouco estou me lixando. O importante é fazer minha coleção. Apagou o cigarro jogando no lixo já abarrotado de pitucas.
Na cozinha, bebeu café gelado. Procurou nos bolsos, não encontrou o maço. Precisou ir à sala. Retirou um cigarro e enfiou o maço no bolso. Voltou para a cozinha servindo-se novamente de café gelado. Pensou em fazer algo para comer. Chegou à conclusão que não estava com fome, portanto não tinha necessidade de preparar comida, apesar do relógio de parede marcar onze horas e quarenta minutos. Introduziu o cigarro entre os lábios e puxou mais uma tragada. O peito se inflou de ar acinzentado satisfazendo o vício. Foi tomado por uma excitação um pouco descontrolada. Não precisaria de subterfúgios para se saciar.
Saiu para o corredor silencioso do prédio. Desceu até o térreo. Passou pelas áreas de lazer e pelas salas de festas. Ela não estava ali. Encontrou-a varrendo a área perto do deposito de produtos de limpeza. Sem dizer nada, pegou-a pela mão e arrastou para dentro do depósito fechando a porta. Uma hora depois, saia de lá, com pose imponente, dizendo nos gestos e andar: é assim que sacio minha sede, não preciso de outras artimanhas, não sou fraco.
 Quando pressionou o botão do elevador, sentiu-se esquisito. Uma comichão na ponta do dedo, como se estivesse se esfumaçando. À medida que chegava ao seu andar, a sensação parecia aumentar. Deu de ombros. Inalou um forte cheiro de fumaça ao fechar a porta atrás de si. Não percebeu, ao largar o chaveiro em cima da mesa que, ao entrar em contato com a madeira, o chaveiro se desfez em fumaça. Foi então que decidiu fazer algo porque achou que estava com fome. Preparou um suculento lanche com tudo o que era de direito. Mas ao colocar o delicioso e gordo lanche na boca, se sobressaltou. Tinha gosto de fumaça de cigarro. Tossiu como se acabara de dar uma longa tragada. A boca era só fumaça. Soltou o lanche que ao bater no chão se desfez em fumaça também. Assustado encostou-se a pia, mas ao contato com seu corpo, a pia também entrou em processo de transformação. Horrorizado presenciou um a um dos móveis e objetos do apartamento se desmanchando. E quando faltava apenas ele, não deu tempo nem de correr para a porta. Foi tragado pela impiedosa transformação.  No meio da sala, ficou uma bola espessa de fumaça preta, compacta, flutuando, parecia que procurava uma saída. Quando por fim, num surdo estouro a bola compacta preta e espessa, explodiu lançando seu odor para todos os cantos do apartamento.
Um ano depois, saia do elevador um senhor, baixo, careca, de óculos, falando com o rapaz que o seguia.

- Vou te mostrar esse apartamento porque você disse estar necessitando bastante. Como não consigo alugá-lo, prometi que o deixaria fechado para sempre. Quem morava nele era um jovem como você, se dizia escritor. Antipático, introspectivo, falava pouco, quase ninguém o conhecia, egocêntrico, nada sociável, vivia a maior parte do dia trancado. Por sorte, era bom pagador, nunca atrasou o aluguel. Todos os meses era batata, não faltava. Chegava o dia, tava ele lá batendo na minha porta com o dinheiro do mês. Não sei o que houve, aliás, ninguém sabe, contei para todos e ninguém entende como aconteceu. Morava quase um ano, quando um dia o cara se escafedeu. É. Sumiu, desapareceu. O cara levou tudo. O engraçado é que ninguém viu nada, nem caminhão, nem ninguém descendo as escadas, a pergunta ficou no ar: como é que ele fez a mudança? Então, ficou só esse cheiro insuportável de fumaça de cigarro. Está sentindo? O apartamento é esse, não vou forçá-lo a alugar. Eu sei. E pense que eu fiz o que? Pintei, mandei raspar as paredes, o assoalho o teto, até ficarem só tijolos, foi passado uma tinta impermeabilizante, mas sabe o que aconteceu? O apartamento ficou cheirando a novo um dia só, no outro dia estava novamente com esse cheiro horrível de fumaça de cigarro. Não entendo. Não vai ficar com ele, não é. Já sabia. Não, não tem que se desculpar, entendo. Parece àquela história que virou filme, como é o nome mesmo? Ah! Isso mesmo, 1408, só que aqui é apartamento e não quarto de hotel, não é.  Entendo, não vai querer alugar, não é? Você não é o primeiro e nem será o último. Acho que vou precisar vender, ou derrubar o prédio e erguer outro. Acho que só assim eliminarei esse forte cheiro de fumaça de cigarro.
Fechou a porta e entrou no elevador sem ver que uma pequena nuvem de fumaça cinzenta saia por baixo da porta.

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