Andava com precisão matemática. Não podia mexer rapidamente um pé após o outro.
Avançava um, esperava um pouco, quando sentia que o pé estivesse calcando a
sola e esta a calçada, aí sim, procurava mudar o outro. Estava indo milímetro
por milímetro. Seus dedos meio longos, toda vez em que ela erguia o pé, se
fechavam na borda da sola para que esta subisse junto e não precisasse arrastar
o pé. Trabalhoso, concordava. Além do que atrapalhava o vai e vem das pessoas,
quase todas apressadas da vida. Já fora uma mulher apressada, agora não era
mais. Preferia andar na monotonia lenta dos passos do que andar na monotonia
dos passos na rapidez assassina. Ainda bem que podia ter aquela sola dada por
seu pai. Ele lhe dissera:
- O que você prefere: o cano da bota ou a sola.
Ao que ela respondeu prontamente:
- A sola.
Preferiu a sola por ser grossa, duraria mais
que o cano. Não podia reclamar. Escolhera dessa maneira.
- Que tal o senhor me dar meia bota? A outra
metade eu compro, perguntou.
Prontamente aceitou, e no mesmo instante lançou a pergunta, que provavelmente
ela não esperava.
- Já que vou dar meia bota, dou a sola, está
bem?
Surpresa, pois pensou que ele iria abster-se
como sempre fazia, aceitou. Apenas não contava com os imprevistos financeiros.
Motivos corriqueiros, nada importantes, mas que não podia desfalcar o controle
da conta corrente que vinha a muito periclitante. Tinha que guardar alguns
trocados, não muito, o apartamento estava quase pronto, os arranjos do
casamento em franco andamento, se viu privada da meia bota. Não se importou.
Amarrou a sola ao seu pé e contente, como o rei nu, viveu nessa opulência até o
dia que conseguiu comprar a outra metade da bota.
Aí, sim, gritou aos quatro cantos:
- Agora tenho tudo, sou rica, e, principalmente, sou feliz.
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