CONTO
O homem sem braço
Sônia Pillon
Enquanto capinava vigorosamente e retirava as ervas daninhas que insistiam em nascer no pátio, com o único braço de que dispunha, o direito, João ficou lembrando do tempo em que podia tudo, sem restrições.
A alta estatura e o porte atlético sempre garantiram o seu sucesso com as mulheres. Ele completava os atributos físicos com um largo sorriso e constante bom humor.
Foi aos 28 anos que conheceu Valdete, moça bonita, tímida e de boa família, e se apaixonou. Não demorou muito e eles começaram a fazer planos para o futuro. Em menos de um ano se casaram, e o primeiro filho, Leandro, nasceu sete meses depois.
João era respeitado na fábrica. Sua força física e dedicação ao trabalho o faziam um dos melhores operários do setor de auto-peças. Era um dos que mais produzia na seção onde trabalhava, e para ele não tinha tempo ruim. Tudo isso até o dia em que prendeu o braço esquerdo na máquina e quase perdeu a vida. A partir daí, tudo mudou. Foi aposentado por invalidez e teve de aceitar esse trabalho, de auxiliar de serviços gerais na associação, com direito a moradia.
Desde o acidente, seu sorriso desapareceu dos lábios. Passou a ser introvertido e desconfiado de tudo e de todos. Mas o que mais o revoltava era o olhar de piedade das pessoas, que o atingia como uma flecha certeira no peito. Nessas horas, levantava a cabeça, virava o rosto para o outro lado e fazia um esforço supremo para não chorar.
Mas o que mais o incomodava eram as crianças, que cochichavam e riam entre si quando o viam passar, aguçadas pela curiosidade e pelo espanto. Se sentia uma atração de circo.
Mesmo assim, procurava seguir com a vida. Valdete teve mais um filho, dessa vez uma linda menina, Lara, o que confirmava que ele continuava sendo um homem vigoroso, que não negava fogo. Mas ele não acreditava mais em si mesmo. Sua auto-estima tinha caído a zero.
Certa vez uma das adolescentes da vizinhança o viu com a mulher e os filhos, e chegou a comentar com uma amiga:
- Olha só, faltando um braço, mas continua fazendo filhos... Sinal de que para outras coisas ele ainda está inteiro, disse, e as duas sorriram, maliciosas. João continuava um homem bonito e atraente, mas não se dava conta disso. Tanto que naquele momento, o riso das duas pareceu apenas um deboche cruel pela sua condição de deficiente físico. E ele as odiou profundamente!... Seus olhos chisparam, e foi só aí que as duas garotas se deram conta do que tinha acontecido.
Em vão tentaram se desculpar cumprimentando-o outras vezes, com seriedade e respeito. A partir daquele dia, toda vez que via as garotas, ele as virava a cara, demonstrando um profundo ressentimento.
Passou a se isolar mais ainda das pessoas. Evitava ao máximo sair de casa, e em família, passou a ser um pai e marido frio. Começou a evitar a mulher na intimidade. Valdete realmente amava o marido, fazia de tudo para agradá-lo, mas ele via em sua dedicação apenas uma manifestação de piedade, nada mais.
Até que um dia o inevitável aconteceu. João pegou suas coisas e foi embora, sem se despedir de ninguém. Valdete ainda ficou mais uns meses na casa, mas depois também se mudou do bairro, triste e cabisbaixa Dizem que voltou para a casa dos pais com os dois filhos.
Quanto a João, ninguém sabe, ninguém viu...Uns dizem que ele foi ser jardineiro em outra cidade, outros que tinha sido internado numa clínica para tratar de depressão. Mas a verdade é que nunca mais se soube do paradeiro de João por aquelas bandas. Nem se tinha morrido, ou se ainda estava vivo.
Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre e há 14 anos radicada em Jaraguá do Sul.
1 Comentário
Produzi esse conto a partir da reflexão de quanto é preciso acreditar na própria força para superar limites e obstáculos... O personagem, fictício, crei a partir de uma situação real.
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