terça-feira, 15 de março de 2011

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BEAUTY PROJECTION (Excertos de um não) - Milena Martins

“Beauty projection in the reflection.

Always the worst way to start”.

(Kevin Moore)

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Peguei um ônibus pra Praça Mauá. Desci. Peguei um ônibus pra Campo Grande. Saltei. Peguei um ônibus pra Madureira. Desci. Peguei um ônibus pro Castelo. Saltei. Peguei um ônibus pra Tijuca. Desci. Peguei um ônibus pra Copacabana. Saltei. Peguei um ônibus pro Meier. Desci. Peguei um ônibus pra Paraty. Saltei. Peguei um ônibus pra Belo Horizonte. Desci. Peguei um ônibus pra Montevidéu. Saltei. Peguei um ônibus pra Buenos Aires. Desci. Peguei um ônibus pra Toronto. Saltei. Peguei um ônibus pra Londres. Desci. Peguei um ônibus pra Dubai. Saltei. Peguei o ônibus onde estou. Enquanto escrevo, um peso. Uma hora eu vou ter que voltar pra casa.

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Pentear os cabelos, lavar o rosto e as mãos. Acordar num grito como se alguma coisa pudesse efetivamente mudar na minha vida: um espinho, um espinho, uma saída. Esperar, talvez. Talvez esperar. Como se alguém pudesse me apagar a solidão. Ou me apagar, talvez. Talvez.

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Tudo é o que não parece.

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Lá fora, ruídos de teclas de computador, um rádio incompreensível, a blusa vermelha do meu chefe entrevista na brecha da janela, rodas de cadeiras com rodas rodando no chão, gemidos de molas de cadeiras com gente se espreguiçando em cima, chuva no telhado de zinco e silêncio. Um mundo inteiro se matando de tédio chuvoso e rotineiro. Enquanto escrevo pra tentar não me matar.

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Ela não fala com ninguém. Ela não fala comigo. Ela tem os olhos verdes muito escuros. Como um mar. Ela chegou ontem e é muito estranha. Eu não sei o nome dela. Ela não se apresentou.

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Eu me debrucei nas costas da cadeira que gira e fiquei girando. De olhos fechados, eu ouvia a música soprada bem perto do meu tímpano. O mundo lá de fora derretido no meu som. Depois abri os olhos e com o pé parei de girar a cadeira, e então tive a curiosidade de ver pra onde meus olhos olhavam agora com a cadeira parada. Eu nunca tinha reparado nos furos nas laterais dos armários ou que a marca das lâmpadas é Philips etc.. Pareço, percebo agora, drogado ou bêbado ou louco girando ou olhando assim e ajo agora como drogado ou bêbado ou louco, o que, talvez, eu esteja, ou seja assim já quase naturalmente, mas, enfim, é só descoragem, nem é medo, e pura literatura. E a música ainda toca e eu quero chorar, porque if I die tomorrow, I'd be all right.

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Ficar sentado aqui esperando

é como ficar imóvel

quando se quer dançar.

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Ela me assustou, parada do outro lado da janela, olhando pra mim fixamente com aqueles olhos azuis translúcidos. Ela fingia que limpava o vidro, mas me olhava fixamente com aqueles olhos azuis translúcidos. Eu estava de olhos fechados, não vi quando ela chegou. Eu estou debruçado sobre o caderno, não vi quando ela foi embora. Mas ela já foi embora. O vidro está limpo. Ela me assusta.

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Um soco na cara seria o suficiente.

Bem dado, no exato centro do meu nariz, onde doesse mais.

Se eu pudesse dormir em paz depois disso, já teria valido.

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“Todos nós estamos sangrando por dentro” (Franko B.).

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Desci as escadas, cruzei o hall de entrada, saí do prédio. Ela fumava lá fora. Me olhou fixamente com seus olhos negros fundos. Virou a cara e soprou a fumaça pro outro lado. Virou pra mim de novo e me sorriu. Sorri de volta, idiotamente. Quis beijar sua boca pra lhe sugar o de dentro. Ela tem alma demais.

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Você tem que morar no mistério. Tem que morar no mistério.

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Hoje acho que vou passar o dia ouvindo Led Zepellin e lendo Sylvia Plath. Minha vida é um compasso dois por oito em fá menor. Quis querer chorar. Mas acabei não querendo.

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Eu quero fugir, eu quero fugir, eu quero fugir. Eu não gosto daqui, eu não gosto deles, eu não gosto disso. Eu preciso ir embora dessa casa, eu não posso mais ficar nessa casa, eu não sou mais parte dessa casa. Essa família já não é mais minha, eu não tenho lugar, eu não tenho ninguém. Uma mão estendida no abismo, uma saída, pelo amor de Deus. Alguém, eu suplico, eu imploro, por caridade, por favor, por favor, faça esses dois calarem a boca, traga o silêncio de volta essa noite, faça o meu pai parar de bater na minha mãe.

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Arrumei minhas malas às cinco da manhã. Quatro sacolas baratas, tudo o que eu tenho. Guardei tudo no armário. E vim trabalhar.

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Ela limpa o chão. Ela limpa o chão. Ela limpa o chão. Ela vai continuar limpando o chão. Até que alguém lhe diga que o chão nunca vai brilhar.

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Você tem que morar no mistério. Tem que morar no mistério.

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Acho que amanhã vou começar a fumar. E sair pra fumar sempre que ela estiver fumando lá fora.

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Hoje ela entrou no escritório. Ela nunca entra aqui. Ela sempre limpa a janela pelo lado de fora. Hoje ela entrou. E limpou a janela pelo lado de dentro. Recolheu o lixo da lixeira ao lado da minha mesa. Pra isso, teve que se abaixar. Ela é muito magra, seus ossos de dinossauro protuberavam nas costas. Quis mordê-los pra lhe sugar o de dentro. Ela tem alma demais.

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Entrei no bar com o rosto quente, o coração apertado, o intestino também. Achei que todo mundo me olhava. Ninguém me olhava. Parei no balcão, chamei o funcionário. Ele veio. Pedi um maço de Carlton branco e um isqueiro da Bic. Ele trouxe. Paguei. Saí do bar. Parei. Abri o maço. Peguei um cigarro. Acendi. Fui andando pela rua com o cigarro entre os dois dedos das mãos, revezando entre elas pra não ficar o cheiro. Parei no ponto de ônibus. Achei que todo mundo me olhava. Ninguém me olhava. No terceiro trago, minhas pernas tremeram. No sexto, comecei a ficar feliz. Eu não sou feliz. Escondi o maço num forro falso da mochila. Dei o último trago quando o ônibus chegou. Joguei a guimba no chão, não consegui pisar em cima. Estava tonto. Fiz sinal pro ônibus. Ele parou. Subi. Esse é o capítulo que o Luiz Ruffato nunca escreveu.

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Vontade de cantar bem alto, bem, bem alto. Mas ninguém nunca me escuta. Então não canto. Mas, por dentro, sou pura música desperdiçada. If I die tomorrow, I’d be all right because I believe that after we’re gone spirit carries on.

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Estou despenteado. Com a calça remendada. Desnorteado. E triste.

Se eu estivesse penteado e bem vestido

talvez eu tivesse esperança.

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Mas não tenho.

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Ela me assustou colocando a mão no meu ombro. Me estendeu um envelope e me olhou fixamente com seus olhos castanhos comuns. Peguei o envelope da mão dela. Ela sorriu. Ela deu as costas. Ela foi embora. Ainda gritei Obrigado! Mas ela não respondeu. Ela não fala com ninguém. Ela nunca bate à porta. Eu nunca escutei a voz dela.

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Queria dizer: vem ser meu sol em clave de fá, grave mas leve, aquecido entre as últimas linhas. Mas e se você confunde as claves? O mi é agudo demais. E dói.

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Me esconder de mim não basta.

Eu vou me achar de novo, mesmo sem querer.

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E eu não quero.

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Tudo aqui é dela. Ninguém sabe disso. Eu também sou dela. E disso ela não sabe. Cada cadeira sobre o chão e cada ser sobre cada cadeira sobre o chão e o chão e as paredes e o teto e tudo que está enjaulado entre o chão, as paredes e o teto dentro dessa cela de rotina e sono e ar-condicionado frio demais e teclas teclando e grampeadores grampeando e papel papel papel é dela. Tudo é dela. Ela é tudo. Ela hoje chorou.

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Por muitos motivos já mentalizei um suicídio perfeito.

Um tiro bem dado, um nó bem dado, um pulo bem dado.

Já que tudo está dando errado.

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Mue pai bateutanto na mihna mãe que elaestá em coma. Fui vê ela lá e enconteri com ele. Bati nele com força,muita forlça e ele desmaiou. Quis continura datendo até ele morrer. Mas emvez disso vim pra esse bar e enchi a cara. Eu estoumuito bêbadpo. Já não sei mias o que fazer. Não quero voltar pra casa. Eu não tenho lugar.

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Nunca me lembro como começa.

Mas sempre há algo que termina mal.

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Hoje fui ver um apartamento pra alugar. Ele é pequeno e úmido, tem um quarto só, não tem área de serviço, não tem aquecedor a gás, não tem gás natural encanado nem fiação pra linha telefônica. A cozinha é pequena. O banheiro é pequeno. O chão é de tacos de madeira e reparei que no canto do corredor tem um ninho de cupins. Me senti tão em casa que fechei negócio.

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Impactante, alguém me chuta o estômago.

Cravo as costas na parede até despencar no tapete.

Imagino essa cena pra tentar não enlouquecer.

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Mas já é tarde.

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Saímos no mesmo horário ontem. Resolvi segui-la, como nos filmes, me escondendo atrás dos postes pra ela não me ver caso se sentisse seguida, isso que só acontece nos filmes. Mas não precisei segui-la. Ela parou no mesmo ponto que eu. Ela pegou o mesmo ônibus que eu. Ela saltou no mesmo ponto que eu. Ela entrou no mesmo prédio que eu. Ela mora no apartamento ao lado. Antes de entrar e fechar a porta, ela me olhou fixamente com seus olhos vermelhos sanguíneos. E me deu boa noite.

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Ela não ouve música, não vê tevê, não usa batedeira, liquidificador, aspirador de pó, secador de cabelo. Me sinto sozinho no mundo sabendo que a tenho perto. E isso é bom.

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Minha mãe saiu do hospital. Meu pai entrou na cadeia. Acendo um cigarro pra ficar feliz.

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Ontem, ela caiu três degraus da escada. Ela estava descendo. Eu estava subindo. Pra ajudá-la, eu a abracei. Ela encostou a cabeça no meu peito. Eu a apertei contra o meu peito. Ela chorou por trinta minutos. Eu perdi a minha reunião. Quando fui embora, ela limpava o chão.

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Você tem que morar no mistério. Tem que morar no mistério. Por favor, por favor. Não saia do mistério.

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Respiro fundo. Abro a minha porta. Cruzo o corredor. Toco a campainha. Ela demora dois minutos sem nem dizer já vai. E vem me atender. Fico calado. Não tenho nada a dizer. Não sei porque estou aqui. Olho praqueles olhos lilases dela, pareço um idiota olhando assim pra ela. São cinco minutos inteiros de silêncio mútuo, ela dentro, eu fora do apartamento. No sexto minuto ela me puxa pela mão.

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Eu não estou em paz.

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Comprei um maço de cigarros e uma garrafa de vodka. Trouxe pra casa. Eu me sinto muito cheio. Tem alma demais dentro de mim.

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Uma grande força por dentro me empurra ao mais fundo de mim. Ela é tão grande que, só por um minuto, eu cresço. Só por um minuto, antes de tudo desabar.

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Me olho no espelho do banheiro de novo. Passei o dia me olhando no espelho do banheiro. Alguém vem me chamar pro happy hour. Recuso. Alguém sai do box e vem lavar as mãos. Desvio. Não quero ninguém, não quero ninguém, não quero ninguém. Eu quero tanto chorar que é involuntário. Choro. No meio do embaçado das lágrimas, noto um ponto claro que não estava lá, no meu olho escuro.

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Acho que amanhã vou enxergar o mistério.

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