quarta-feira, 23 de março de 2011

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Carnavalha






Aquém da festa. Das frestas que a alegria possibilita. Antes dos corpos, dos rostos, do movimento insano da liberdade absolutamente etílica. Entrincheirado em uma bolha de angústia e pânico. Ele. Espremido, comprimido e conduzido pela onda de carne. Carne delirante. Dentes expostos em sorrisos de todas as classes. Baco. Euforia e insanidade. Tentação. Fluxo de caos banhando criaturas. Criaturas despojando-se das máscaras cotidianas. A vez da outra máscara. Ritmo. Embalo. Ritos. Consagração. Mística pagã.
Mas havia o contrato. Fora avisado. Morte. Morte no carnaval. A morte no ritmo da folia. A morte rindo, brincando. Morte e vida abraçadas, vertiginosa valsa burlesca. Burlar a morte? Esquivar-se?
A memória insistia em trazer ao cérebro e aos sentidos as imagens. O homem sentado. Impassibilidade facial. Voz grave. A pergunta. “O dinheiro?” a resposta “não consegui” e o levantar em câmara lenta. Enorme. Magro. Poderoso. A mão que lhe caia no ombro. Um sorriso profundo que engolia sua alma e todas as esperanças. Não tinha o dinheiro? Como assim? O discurso gaguejante, arfante, as explicações, o choro. As súplicas. Os joelhos cravados no chão. Citações de Deus e santos.
Mas o diabo riu. E a mão enorme e ossuda. Píton enforcando a presa. Olhos arregalados, saltando das órbitas. O coração. Saltos, murros. Gritos. O peito não continha.
A porta verde abriu-se. Mais um corpo no espaço da aflição. Baixo. Forte. Empurrões, zombarias. O pontapé da humilhação. A sentença. Morte no carnaval. Sem dinheiro. Com morte. Dinheiro é vida. Dinheiro é segurança. Aliança. Dinheiro é a condição da existência. A moeda. O dobrão pregado no mastro do Pequod. Os corpos em volta. O sonho. O devaneio. Projeções sobre e com a moeda.
A ausência da moeda é o nada. Não o caos. Morte. O caos é vida em forma bruta. A morte é... fim?
O esconderijo invadido. Pontos finais incandescentes abrindo buracos nas páginas. Livro avariado. A fuga. Pelas linhas. Pelas palavras do medo. Pelos parágrafos do desespero. Ausência de vírgulas. Desvario. Discurso ininterrupto. Verborragia.
E então a turba. O mundo em momento de insensatez. O instante do grito. Dos abraços. Polvo que se alastra entre os corpos. E música. E a alegria. Alheia. E os sorrisos, beijos e suores. Mas entre as frestas dos corpos há a morte. E ela espreita. Ela procura. Então a fuga. Sempre a fuga. E também ele busca. Olhos de presa. O predador em caça.
O álcool. Movimento de magia. Deslocação entre as mãos. Mergulhos nas gargantas. Explosão dos corpos. Euforia. Valentia. Depravações. A provação do corpo. Ritual de passagem.
Haveria uma forma de passar? Ir para outro espaço, além da morte?
Foi então que elas chegaram. Mortes. Senhoras morte. Cinco ao todo. E o abraçaram. Consumiram-no em abraço negro e mortal. E o levaram.  Navegar no Aqueronte. Fluir pelas artérias da morte. E então as sereias. Cantando. Com o corpo. Insinuantes, dissimuladas. Promessas. Prazeres. Amores. E todas as mortes – e ele. Em braços, encantados pelo som das nereidas foram. Ruas, esquinas, praças, mares nunca dantes navegados. E então não havia mais. O mar era turbilhão. Interrogação entre a terra. Substantivo é a terra. O mar é um campo, um espaco liso heterogêneo, esposa um tipo muito particular de nultiplicidades: as multiplicidades não métricas, acentradas, rizomáticas, que ocupam o espaço sem medi-lo, e que só se pode explorar avançando progressivamente.  Travessias. Caronte. Condutor de almas. Os caminhos-trajétos-sendas marítimas. Contidas todas nas rugas do rosto de Caronte, talves nos murmúrios e gritos da Stultifera navis. Outra verdade redigida na insanidade, não-razão. Obscurecer o iluminismo para facilitar a visão. A claridade ofuscante cega infinitamente... E os faróis dissiparam o rosto pelos espaços da luz que se espalhava. E as falsa mortes correram. Mantos negros que se afastavam em irônico-pânico. E ele. Os homens cuspidos do carro. Quatro cavaleiros. Quatro ternos. Branco. Vermelho. Preto. Esverdeado.
E a cidade e suas ruas são os condutos, as vias, os caminhos do desatino. O de branco barganha, promete, acalma. E seus olhos como cintilante coroa luzem. Vergando o arco das palavras dúbias, dos afagos ambíguos. O discurso hipnótico. Flechas de sacramentadas imposturas. O de terno vermelho é o vômito incandescente da fúria. Guerra em sangue e pintura. Espada que revolve a calma e provoca na alma todo o clamor da ruptura. Espada que em pedaços rompe a carne, corpo e palavra. E nas ruas que caminham na distância da festa, eis que o de preto tudo infesta. Escuridão e gemido, penúria. A fome da vida que esvai. Garganta faminta, estômago que toda esperança enclausura e tritura. E na mão armada e faminta pesa os pecados. Vírus, praga, bactéria fatal, instalado no corpo o corpo consome em dente até a última semente.
Ultimo. E decadente. Mais velho dos quatro. Encarnação-descarnação. Morte. Magreza  e altura. A vantagem do osso sobre a carne. Gadanha  humana. Curvatura da morte. Na curva das costas todos os desvios da criação. Olhos verdes-vetustos. Da destruição consorte.
Então os pés comem o chão. Devoração das distâncias. Banho salgado no suor de todos os medos. Batismo no sal de todos os terrores. O distender da musculatura. Movimento de resistência-insistência.
E o branco: “Meu dedicado amigo, isso tudo é prazer! Confia e aprenderás depressa a bem viver.”
E o vermelho: “O quê? Tão Longe? Temo ter de utilizar meus direitos de demo.”
E o preto: “Eu sei, sei... bem sei... Oh, Tolo impressionável! Enxergas só miragens!”
E o esverdeado: Eis que estamos de novo no limite de nosso bom senso, exatamente onde os seres humanos perdem a razão. Por que fazes acordo conosco se não podes cumpri-lo? Desejas voar e não te sentes seguro ante a vertigem? Nós que te procuramos ou tu que nos invocastes?”

E a navalha?

Arte: Anieli Rosa Martins
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Vozes do texto
O parágrafo sobre o mar como espaço liso é de Gilles Deleuze e Félix Guatarri e pode ser encontrado nos Platôs, especificamente o de número 5.
As falas dos quatro cavaleiros, no final do conto são da obra Fausto, de J. W. Goethe. Frases retiradas das argumentações de Mefistófeles.
 O resto é delírio. Divagação.





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