Heresia. Foi disso que me acusaram.
E não, eu não tinha a menor ideia. Porque essa coisa toda, essas palavras complicadas, não, isso não era comigo. Jamais me imaginaria, por exemplo, criminoso. Não me sinto, aliás. Mas eles dizem, sim, estão dizendo a todo instante, volta e meia vem alguém aqui na minha cela e repete criminoso criminoso criminoso.
Não sei como eles arrumaram um inquisidor. Falo inquisidor agora, antes nem sabia o que era isso. Um sujeito da igreja. Pra me condenar pelo meu pecado. Além dele um juiz, porque, segundo me explicaram, a igreja e o inquisidor se encarregam de cuidar dos meus pecados do espírito; dos meus crimes de homem cuidam o juiz, a justiça, a polícia que não parava de me bater na cabeça e me chamar de criminoso.
E dizer que dias atrás eu era apenas eu mesmo, a vida comum de todo mundo, a escola, os amigos, as gatas. Um baseadinho de vez em quando, não sempre, que não tenho vícios além da punheta, um cara de família sim senhor.
Mas eles não querem saber de nada disso; agora sou perigoso. E fiquei ouvindo dos corredores, porque é só isso que tenho pra fazer, ouvir a conversa dos carcereiros e funcionários, já que nessa cela não existe mais nada além das paredes. Meu mp3 levaram, a minha carteira. Nem o celular deixaram comigo. Fiquei ouvindo, portanto, que o inquisidor e o juiz se reúnem todo dia, discutem a minha situação. E não chegam a um acordo. O inquisidor gosta dos métodos antigos, quer a tortura pra mim, depois a fogueira. Ninguém mais morre na fogueira hoje, diz o juiz, seus métodos são antiquados. Antiquados mas eficazes, diz o inquisidor, mantivemos a ordem e a fé durante séculos. Uma igreja de bárbaros, diz o juiz, nós não, nós somos civilizados, a lei hoje é mantida por cavalheiros.
Cavalheiros o caralho. Vieram do nada, do nada me prenderam, não sei até agora a razão. Não roubei, não matei. Meu único crime é no videogame, ali sim já matei aos milhares, mas sem testemunhas, o crime perfeito.
— Criminoso! — falou o carcereiro. — Criminoso!
Aí eu perguntei, precisava perguntar. Qual foi o crime, o que é que eu fiz?
O sujeito tomou o café do copo de plástico, devagar, acendeu um cigarro, ficou lá fumando.
— Calaboca, vagabundo — foi o que ele disse, só isso. E se virou, desapareceu pelo corredor.
Sozinho de novo. Esse negócio de ficar sozinho na cela, só pode ser, isso só pode ser uma maneira de me convencer, de me fazer acreditar no que eu não acredito. Maneira filadaputa de me botar na cabeça o crime que eu não sei, que eu não fiz. Sozinho a gente vê coisas, as paredes falam. Sozinho portanto me deixam pra isso mesmo: colocar em mim aquilo que não ainda não tenho.
Eu tava na rua, já nem lembro se indo ou vindo, os fones no ouvido, o meu mp3 despejando música na cachola. Por isso não ouvi o carro às minhas costas, o barulho dos policias. Foi tudo muito rápido, um tapão na orelha, meu mp3 com fone e tudo girando no chão. Um baixinho dentuço, cara de rato, me chutou as canelas, me botou de joelho na calçada. E foi nessa posição que eu vi os caras com o meu mp3 na mão, todos eles em volta do aparelhinho, fazendo cara de besta. Isso, esse o meu crime? Ouvir música?
Guardaram o aparelho num saquinho transparente, com cuidado, e sem cuidado algum meteram as algemas nos meus pulsos, mais tapas na cabeça, entra no carro vagabundo, vambora, e daí que começaram com a ladainha: criminoso criminoso. Na delegacia enfim é que pegaram a minha carteira, o celular, mas não colocaram junto do mp3, colocaram numa caixa e a caixa num armário. O mp3, eu vi, foi parar na mesa do delegado.
Depois que eu botei os pés na delegacia pararam de me bater. Claro, todos eles muito gentis e educados. Mas não pararam de repetir criminoso criminoso criminoso. Um deles ainda teve a caradepau de encostar a barba grossa no meu ouvido e sussurrar: criminoso. Cheguei a sentir o bafo, uma mistura de cachaça e café e cigarro, o calor da voz que parecia querer enfiar lá no fundo da minha cabeça não apenas a palavra, mas tudo de ruim que ela significava.
Em nenhum momento o delegado me chamou. Fiquei horas ali, em pé, olhando o sujeito que pegava o mp3, apertava os botões com uma alegria quase infantil, botava os fones no ouvido, ouvia um pouco e então desligava tudo. Aí ele olhava longamente pra mim, sorria, e este seu sorriso não me explicava nada. Daí repetia tudo outra vez até voltar de novo com o sorriso. Eu ali de pé, a cabeça ainda doendo dos tapas, em silêncio.
— Manda esse vagabundo pra gaiola — falou finalmente o delegado.
Tiraram as algemas de mim mas as marcas ficaram, e não apenas nos meus pulsos. Me empurraram aos trancos por um corredor estreito e enfim me jogaram aqui. Que é onde eu penso no escuro, penso, penso. E ouço, e tento não enlouquecer.
Não vi nunca mais o delegado mas o seu sorriso não me saiu da cabeça. Dizia alguma coisa, sim, mas não consegui alcançar. Aliás, não alcanço muita coisa encerrado aqui. Só pedaços de conversas, coisas soltas. A única coisa que me chega completa é o criminoso que eles tanto repetem que já chego até a achar que é isso mesmo, eu sou criminoso, fui eu mesmo, eu confesso. O quê?
Foi só na audiência que descobri que o meu crime era mesmo o de ouvir música no meu mp3, que estava na mesa entre o juiz e o inquisidor. Foi o juiz, aliás, quem falou primeiro:
— Este pois é o seu crime. Está condenado.
Não houve julgamento, eu falei, não tenho advogado, como é que podem me condenar?
— Deus é o seu advogado a partir de agora — o inquisidor tomou a frente.
Antes mesmo que eu pudesse responder, o juiz mandou pra cima do inquisidor uma dura daquelas, dizendo que Deus não tinha voz nem representação no seu tribunal. O inquisidor murmurou algo em latim, se benzeu, e falou que o verdadeiro herege era ele, o juiz, que tentava sobrepor a sua autoridade terrena aos poderes do Criador.
Onde é que já se viu, falou o inquisidor, esta sua justiça querendo condenar um menino que não cometeu crime algum, apenas pelo fato de que ele estava na rua ouvindo suas músicas num aparelho que encontramos por aí aos milhares. Ignorância, isso sim! Justiça mesmo só a de Deus, que sabe muito bem distinguir as coisas.
Ora ora ora, continuou o juiz, não era mesmo a sua Igreja que ainda agora dizia que era pecado, um aparelho que servia de instrumento ao demônio, corrompendo a alma dos jovens e fazendo deles escravos das tecnologias mundanas? Não era a sua mesma Igreja que queria mandar este inocente para a fogueira, para queimar como os bruxos que só existem agora na mentalidade anacrônica de homens como você?
Fiquei impressionado com o vocabulário dos caras. Mandavam bem, mas estavam ali pra me fuder, e se agora jogavam pra cima um do outro a responsabilidade pelo meu caso não era certamente no meu bem estar que estavam pensando.
— Posso falar? — perguntei.
— NÃO! — eles responderam ao mesmo tempo. E continuaram a brigar:
— Pois é injusto condenar este jovem à prisão — falou o inquisidor —; neste exato momento outros milhares de meninos iguais a ele estão lá fora, cada qual com seus fones no ouvido, gozando da liberdade de ir e vir e ouvir o que bem entendem.
— Injusto é condená-lo à fogueira — falou o juiz —, essa coisa torpe e cruel da qual a sua Igreja tanto se orgulha. Voltamos, pois, à Idade das Trevas? E quem o acusou em primeiro lugar não fomos nós, foi a sua Igreja, que viu no aparelhinho um inimigo da ortodoxia, um aliado do demônio, veja só! Ignorância, isso sim, a ignorância é de vocês...
Eu ali calado feito um tonto, mais duas três outras pessoas na sala de audiências, a religião e a lei brigando feito bestas bem à minha frente.
O mp3. Enquanto a Igreja não se entendia com a Justiça, eu olhei pros lados, vi na cara das pessoas o desinteresse pelo assunto, voltei os olhos pra mesa dos homens e o meu mp3 tava lá, esquecido, chamando por mim em silencio.
Devagar eu me aproximei, e os dois discutiam tão apaixonadamente que era como se falassem de outra pessoa, não de mim, cada um defendendo teses sobre a liberdade e outros assuntos só do entendimento deles. Me aproximei mais, peguei o mp3 e virei as costas devagar. Fui saindo de mansinho, a voz dos dois homens ficando pra trás, o som pulsando forte em meus ouvidos outra vez.
E não, eu não tinha a menor ideia. Porque essa coisa toda, essas palavras complicadas, não, isso não era comigo. Jamais me imaginaria, por exemplo, criminoso. Não me sinto, aliás. Mas eles dizem, sim, estão dizendo a todo instante, volta e meia vem alguém aqui na minha cela e repete criminoso criminoso criminoso.
Não sei como eles arrumaram um inquisidor. Falo inquisidor agora, antes nem sabia o que era isso. Um sujeito da igreja. Pra me condenar pelo meu pecado. Além dele um juiz, porque, segundo me explicaram, a igreja e o inquisidor se encarregam de cuidar dos meus pecados do espírito; dos meus crimes de homem cuidam o juiz, a justiça, a polícia que não parava de me bater na cabeça e me chamar de criminoso.
E dizer que dias atrás eu era apenas eu mesmo, a vida comum de todo mundo, a escola, os amigos, as gatas. Um baseadinho de vez em quando, não sempre, que não tenho vícios além da punheta, um cara de família sim senhor.
Mas eles não querem saber de nada disso; agora sou perigoso. E fiquei ouvindo dos corredores, porque é só isso que tenho pra fazer, ouvir a conversa dos carcereiros e funcionários, já que nessa cela não existe mais nada além das paredes. Meu mp3 levaram, a minha carteira. Nem o celular deixaram comigo. Fiquei ouvindo, portanto, que o inquisidor e o juiz se reúnem todo dia, discutem a minha situação. E não chegam a um acordo. O inquisidor gosta dos métodos antigos, quer a tortura pra mim, depois a fogueira. Ninguém mais morre na fogueira hoje, diz o juiz, seus métodos são antiquados. Antiquados mas eficazes, diz o inquisidor, mantivemos a ordem e a fé durante séculos. Uma igreja de bárbaros, diz o juiz, nós não, nós somos civilizados, a lei hoje é mantida por cavalheiros.
Cavalheiros o caralho. Vieram do nada, do nada me prenderam, não sei até agora a razão. Não roubei, não matei. Meu único crime é no videogame, ali sim já matei aos milhares, mas sem testemunhas, o crime perfeito.
— Criminoso! — falou o carcereiro. — Criminoso!
Aí eu perguntei, precisava perguntar. Qual foi o crime, o que é que eu fiz?
O sujeito tomou o café do copo de plástico, devagar, acendeu um cigarro, ficou lá fumando.
— Calaboca, vagabundo — foi o que ele disse, só isso. E se virou, desapareceu pelo corredor.
Sozinho de novo. Esse negócio de ficar sozinho na cela, só pode ser, isso só pode ser uma maneira de me convencer, de me fazer acreditar no que eu não acredito. Maneira filadaputa de me botar na cabeça o crime que eu não sei, que eu não fiz. Sozinho a gente vê coisas, as paredes falam. Sozinho portanto me deixam pra isso mesmo: colocar em mim aquilo que não ainda não tenho.
Eu tava na rua, já nem lembro se indo ou vindo, os fones no ouvido, o meu mp3 despejando música na cachola. Por isso não ouvi o carro às minhas costas, o barulho dos policias. Foi tudo muito rápido, um tapão na orelha, meu mp3 com fone e tudo girando no chão. Um baixinho dentuço, cara de rato, me chutou as canelas, me botou de joelho na calçada. E foi nessa posição que eu vi os caras com o meu mp3 na mão, todos eles em volta do aparelhinho, fazendo cara de besta. Isso, esse o meu crime? Ouvir música?
Guardaram o aparelho num saquinho transparente, com cuidado, e sem cuidado algum meteram as algemas nos meus pulsos, mais tapas na cabeça, entra no carro vagabundo, vambora, e daí que começaram com a ladainha: criminoso criminoso. Na delegacia enfim é que pegaram a minha carteira, o celular, mas não colocaram junto do mp3, colocaram numa caixa e a caixa num armário. O mp3, eu vi, foi parar na mesa do delegado.
Depois que eu botei os pés na delegacia pararam de me bater. Claro, todos eles muito gentis e educados. Mas não pararam de repetir criminoso criminoso criminoso. Um deles ainda teve a caradepau de encostar a barba grossa no meu ouvido e sussurrar: criminoso. Cheguei a sentir o bafo, uma mistura de cachaça e café e cigarro, o calor da voz que parecia querer enfiar lá no fundo da minha cabeça não apenas a palavra, mas tudo de ruim que ela significava.
Em nenhum momento o delegado me chamou. Fiquei horas ali, em pé, olhando o sujeito que pegava o mp3, apertava os botões com uma alegria quase infantil, botava os fones no ouvido, ouvia um pouco e então desligava tudo. Aí ele olhava longamente pra mim, sorria, e este seu sorriso não me explicava nada. Daí repetia tudo outra vez até voltar de novo com o sorriso. Eu ali de pé, a cabeça ainda doendo dos tapas, em silêncio.
— Manda esse vagabundo pra gaiola — falou finalmente o delegado.
Tiraram as algemas de mim mas as marcas ficaram, e não apenas nos meus pulsos. Me empurraram aos trancos por um corredor estreito e enfim me jogaram aqui. Que é onde eu penso no escuro, penso, penso. E ouço, e tento não enlouquecer.
Não vi nunca mais o delegado mas o seu sorriso não me saiu da cabeça. Dizia alguma coisa, sim, mas não consegui alcançar. Aliás, não alcanço muita coisa encerrado aqui. Só pedaços de conversas, coisas soltas. A única coisa que me chega completa é o criminoso que eles tanto repetem que já chego até a achar que é isso mesmo, eu sou criminoso, fui eu mesmo, eu confesso. O quê?
Foi só na audiência que descobri que o meu crime era mesmo o de ouvir música no meu mp3, que estava na mesa entre o juiz e o inquisidor. Foi o juiz, aliás, quem falou primeiro:
— Este pois é o seu crime. Está condenado.
Não houve julgamento, eu falei, não tenho advogado, como é que podem me condenar?
— Deus é o seu advogado a partir de agora — o inquisidor tomou a frente.
Antes mesmo que eu pudesse responder, o juiz mandou pra cima do inquisidor uma dura daquelas, dizendo que Deus não tinha voz nem representação no seu tribunal. O inquisidor murmurou algo em latim, se benzeu, e falou que o verdadeiro herege era ele, o juiz, que tentava sobrepor a sua autoridade terrena aos poderes do Criador.
Onde é que já se viu, falou o inquisidor, esta sua justiça querendo condenar um menino que não cometeu crime algum, apenas pelo fato de que ele estava na rua ouvindo suas músicas num aparelho que encontramos por aí aos milhares. Ignorância, isso sim! Justiça mesmo só a de Deus, que sabe muito bem distinguir as coisas.
Ora ora ora, continuou o juiz, não era mesmo a sua Igreja que ainda agora dizia que era pecado, um aparelho que servia de instrumento ao demônio, corrompendo a alma dos jovens e fazendo deles escravos das tecnologias mundanas? Não era a sua mesma Igreja que queria mandar este inocente para a fogueira, para queimar como os bruxos que só existem agora na mentalidade anacrônica de homens como você?
Fiquei impressionado com o vocabulário dos caras. Mandavam bem, mas estavam ali pra me fuder, e se agora jogavam pra cima um do outro a responsabilidade pelo meu caso não era certamente no meu bem estar que estavam pensando.
— Posso falar? — perguntei.
— NÃO! — eles responderam ao mesmo tempo. E continuaram a brigar:
— Pois é injusto condenar este jovem à prisão — falou o inquisidor —; neste exato momento outros milhares de meninos iguais a ele estão lá fora, cada qual com seus fones no ouvido, gozando da liberdade de ir e vir e ouvir o que bem entendem.
— Injusto é condená-lo à fogueira — falou o juiz —, essa coisa torpe e cruel da qual a sua Igreja tanto se orgulha. Voltamos, pois, à Idade das Trevas? E quem o acusou em primeiro lugar não fomos nós, foi a sua Igreja, que viu no aparelhinho um inimigo da ortodoxia, um aliado do demônio, veja só! Ignorância, isso sim, a ignorância é de vocês...
Eu ali calado feito um tonto, mais duas três outras pessoas na sala de audiências, a religião e a lei brigando feito bestas bem à minha frente.
O mp3. Enquanto a Igreja não se entendia com a Justiça, eu olhei pros lados, vi na cara das pessoas o desinteresse pelo assunto, voltei os olhos pra mesa dos homens e o meu mp3 tava lá, esquecido, chamando por mim em silencio.
Devagar eu me aproximei, e os dois discutiam tão apaixonadamente que era como se falassem de outra pessoa, não de mim, cada um defendendo teses sobre a liberdade e outros assuntos só do entendimento deles. Me aproximei mais, peguei o mp3 e virei as costas devagar. Fui saindo de mansinho, a voz dos dois homens ficando pra trás, o som pulsando forte em meus ouvidos outra vez.
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