Quis ligar pra alguém. Mas eu não tinha ninguém.
O dia estava quase na metade e eu não tinha feito nada. A minha vontade
era mesmo de nada – de não ver ninguém, não comer, não dormir, não viver, não
morrer – e isso me angustiava. Pensei nas pessoas que deixei pra trás em
Paraty. Minha mãe bordadeira, religiosa, debruçada aos pés das imagens mórbidas
das igrejas centenárias. Meu pai, dono da cachaçaria, com quem aprendi a beber
mais do que eu podia suportar. Talvez porque a vida também era mais do que eu
podia suportar. Minhas primas Joana e Jacinta, nomes feios, principalmente o
último, mas faziam jus às donas, tadinhas. E eu sempre tinha sido tão bonita.
Eu sempre tinha me orgulhado, me metido em pedestais, me julgado tão acima só
por ser muito bonita, cobiçada e até amada, por vezes muito amada. Joana tinha
dois filhos agora, e uma grife de camisetas pra turistas. Jacinta, que gostava
de cozinhar, tinha vendido doce na praça até casar com um dono de restaurante,
que morreu e lhe deixou tudo. E eu não tinha mais tanta beleza nem porra
nenhuma nessa vida.
Pensando nisso, fumei pra não chorar, chorei pra não gritar, fumei mais
pra não chorar mais ainda, chorei mais pra não morrer como morrem as cigarras,
na explosão do grito, depois tentei esquecer a família da qual eu nunca tinha
me sentido a fazer parte. E quis então, desesperadamente e ainda mais do que
antes, ligar pra alguém.
Mas eu não tinha ninguém.
Ainda me restavam aqueles pífios contatos no orkut, que depois migraram
pro facebook and so did I. Gosto dessa palavra, pífio, tão vocálica. Mas eu não
tinha computador, só usava o do trabalho, e agora eu já não tinha mais
trabalho. Nem nenhum amigo. No máximo quinze contatos com quem eu de fato
mantinha contato, os outros me acrescentaram como um número a mais nas suas
listas. Eu nunca recebia depoimentos, nem nunca mandava, eu nunca participava
dos grupinhos e joguinhos fofos com fazendinhas pra cuidar, e eu nunca recebia
recados além de caravanas e excursões e enlarge your penis etc.. Meu nome não
era o meu nome, porque eu não queria ser encontrada e quando me perguntavam por
que Irene Jobim eu não respondia mesmo. Eu nunca dava parabéns nos
aniversários, nunca likava nada, nunca sharava nada, nunca comentava nada. Minhas
fotos eram poucas, umas cinco, todas com gente do trabalho em situações comuns,
e publicadas com legendas do tipo “Eu e Fulano num momento de descontração” ou
“Beltraninha e eu no Lugar Tal” só pra cumprir o ritual. Ao todo, meus contatos
deviam corresponder a umas trinta ou quarenta pessoas por quem eu nutria pouco
ou nulo carinho, com quem eu tinha pouco ou nulo convívio.
Ninguém pra quem ligar.
Então limpei com esmero o tapete persa da sala, me fixei em cada detalhe
pra tentar não pensar – ele era falso, anyway. E eu tinha passado detergente de
flores nos tacos do quarto pra deixar o apartamento com cheiro de flores, mas o
apartamento cheirava a detergente de flores, que não cheira a flores. O
apartamento estava então finamente arrumado e cheiroso pras visitas que não
viriam. Eu sabia que as visitas não viriam. Ninguém me visitava.
Eu não tinha ninguém.
Eu não tinha cultivado pequenas amizades nem mantido as grandes. Gente
sempre me dava e dá muita preguiça, you know? Eu tinha trinta e cinco anos e
nunca tinha realizado nenhum sonho, e tive muitos, grandes, impossíveis, e
quase cheguei, estendi a mão, o dedo e outro e mais outro dedo, mas caí, e o
meu lugar era mesmo o abismo e a escória. Realizar sonho me dava e dá muita
preguiça, you know? E me frustrar por não ter nada também. Macunaímico, I
think.
Eu morava num apartamento bem no centro do centro do Rio de Janeiro, onde
todas as sextas eu não dormia porque a música ao vivo do bar não deixava. Então
eu ia pro bar, cantava com o músico, cantava o músico, levava o músico pra casa
depois de me embriagar e embriagá-lo também, e eventualmente acordava sem o
músico e sem alguma joia falsa ou o dinheiro na carteira. Quando cansava de um
músico (e eles não duravam muito naquele bar, nem na boate da esquina, porque
ambos eram do mesmo dono avarento que pagava pouco), havia sempre outro músico,
um pior do que o outro (a rotatividade era grande no couvert artístico e na
minha cama também).
Eu não era de ninguém. Mesmo quando eu queria ser.
Devia ser carma de outra vida, fardo, destino, a Moira. Ou talvez só tivesse
sido escrito assim.
Eu não era do centro do centro do Rio de Janeiro. Eu era de Paraty, entre
a praia e a serra, depois de Angra e de tudo. Quatro horas me separavam da
minha família, e muitos anos também, desde que eu havia saído escorraçada de
casa por ter dormido com o cara mais velho que terminou o trabalho que o Júlio
deixou incompleto.
Eu costumava mergulhar no mar, andar no barco do seu Borges com Júlio,
Isabel e Eduardo. Eu também saía pra beber com uma carteira falsa. Todo mundo me
conhecia mesmo, sabia que eu não tinha idade mesmo. Mas pedir a carteira era
manter o ritual.
Muitas vezes eu enchi a cara e disse pra minha mãe que tinha dormido na
casa de Isabel. Mas eu dormia pelos bancos, pelas ruelas do centro histórico,
ou ficava acordada e fumava e cantava até o dia seguinte, quando eu me jogava
no mar pra me purificar ou pra sentir a dor da água fria, provavelmente a
última opção. Eduardo me provocava, mas eu nunca me deixava levar. Eu sabia que
ele me amava. Júlio fazia tudo por mim, mas eu nunca me deixava levar. Eu sabia
que ele me amava. Eu não era de ninguém. Vitória mulher dentro da Vitória
menina, como fruta dentro da casca.
Eu queria fugir, queria algo maior, um lugar limpo que não era aquele. Eu
não era feliz em Paraty.
Nem no Rio de Janeiro.
Eu não tinha onde ficar nem pra onde voltar. Eu quase sabia com plena
certeza que eu não seria feliz em lugar algum. Como um destino contra o qual
não se luta pela certeza da derrota.
Meu passado eram livros nunca aceitos pelas editoras, músicas nunca
aceitas pelas gravadoras, um diploma e uma pós-graduação que nunca me levaram a
lugar nenhum, tudo isso pesando pelas muitas estantes na sala, no quarto, na
quina entre o banheiro e o quarto, no corredor entre a porta de entrada e a
sala, num canto escuro da área de serviço. Um passado mofado a pesar pelas
estantes. Eu era o mofo dentro daquele apartamento úmido de paredes mofadas e
crespas, uma caixa de mofo. Um morango mordido mofando dentro da caixa de mofo.
Porra! Aquele devia mesmo ser o meu lar.
Solidão.
Deu vontade de chorar. Deu vontade de ter vontade de chorar. Deu vontade
de vomitar de novo, dessa vez numa das estantes ou sobre o telefone que eu
tinha sei lá por que, ninguém me ligava, eu não tinha ninguém. Mas não tive
vontade de ter vontade de coisa alguma, nem chorei, nem vomitei. Constatei que
eu era miserável. E que eu já tinha constatado isso havia muito tempo.
A tristeza já tinha se tornado costumeira naqueles dias, naquele primeiro
dia sem emprego na caixa de mofo, o sol se pondo lá fora por trás de prédios
gigantes no centro do Rio e uma trilha sonora como As time goes by rolando dentro
de mim em vez do forró do bar lá de baixo, que já estava começando o expediente
mal a noite caía. A tristeza já era costume e o costume destrói a magia de
qualquer coisa, até mesmo da dor, que é o que de mais fantástico se tem basta
não a querer. O costume destruiu a magia dos horizontes de Paraty e a do Rio de
Janeiro, pouco a pouco, e a da minha vida sem nada nem ninguém, uma ausência de
raízes que eu tanto quisera na juventude e agora me era incômoda. Nada nunca
tinha me bastado.
Quis ligar pra alguém. Eu quis muito poder dividir com alguém o meu
tempo, a minha dor, a minha angústia, como eu tinha feito por tanto tempo com
Isabel. Mas eu não tinha ninguém. Quis então escrever um poema, mas ele nunca
seria lido, quis compor uma música, mas ela nunca seria ouvida. Quis querer
muitas coisas, levantar a bunda da cadeira da cozinha, respirar o ar de fora do
apartamento mofado, a caixa de mofo, e recomeçar a viver. Devo ter sentido
esperança por um curto momento, mas não lembro. Eu não queria nada, o ar lá de
fora era mais mofado e sujo e feio e preto e mau que o cá de dentro, e a vida
era perder tempo de vida e estar mais perto de morrer.
Virei na goela uma xícara de café sem açúcar e quase sem água, acendi um
mentolado. E me olhei no espelho. Eu não tinha ninguém. Nem pra telefonar, nem
pra dividir o meu café mal feito, o meu cigarro fiado, o meu espelho rachado ao
meio, a minha imagem dividida e miserável.
E só então quis de volta Isabel.
1 Comentário
Milena,
Tenho acmpanhado o seu 'Deposto sobre o abismo' e estou gostando muito!
Aguardando a 5a parte...
Um Beijo, Jorge
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