Desde o discurso
de Alcibíades no enceramento do Banquete,
o ciúme pode ser associado ao amor como uma variação do termo, fazendo-nos
pensar se seria esta uma dicotomia existente no domínio dos sentimentos, ou
ledo engano daqueles enxergam as relações humanas como as relações de posse
comuns ao mundo capitalista.
É possível para
um amante elevar o não querer para além do bem querer? Como desprender-se de
algo que parece involuntário? Ou ainda, sentir-se ganhador com a perda?
A literatura
brasileira possui dois belos exemplares de obras que tem como tema principal o
ciúme, Dom Casmurro, um exemplo de
obra aberta, que há mais de um século põe em voga dentro do mundo acadêmico e dentro
do senso comum, se teria ou não Capitu traído Bentinho? A narrativa conduzida
somente pelo ciumento, se não apreciada com a devida atenção, faz com que o
leitor compartilhe da visão do real construída pelo Casmurro, mostrando o quão
poderoso e alucinógeno é tal sentimento para a mente humana.
Entretanto,
ambas as obras nos mostram alguém que vivera uma situação amorosa permeada pelo
sentimento de posse no período da juventude e se lembra de um tempo já ido, mas
seria possível o despertar de tal sentimento na maturidade?
A resposta dada
por Dalton Trevisan é sim, ao menos se nos basearmos no seu conto chamado Penélope, o qual nos narra a história de
um casal da terceira idade que vive sem contato algum com outros humanos, que
num dia começam a receber cartas, sem remetente, as quais serão o motor que
impulsionará o ciúme da personagem masculina.
Fazendo uso de
um narrador onisciente ao contrário de Machado de Assis e de Graciliano Ramos,
a história não é contada pela personagem ciumenta, tal como podemos perceber no
inicio do conto: Naquela rua mora um
casal de velhos.
Um fato
interessante deste conto é que além da intertextualidade com as obras aqui já
citadas, o texto com o qual este se propõe intertextualmente a se relacionar e
com a Odisséia, de Homero, mais
especificamente com a problemática da espera de Penélope por Ulisses,
acrescentando a dúvida sobre a fidelidade da personagem durante os 20 anos em
que esta esperou pela volta do seu marido.
No terceiro
parágrafo aparece uma importante descrição do contraste entre as personagens, a
qual parece defender a esposa:
Por vezes, na ausência do marido, ela traz o um osso ao cão vagabundo que
cheira o portão. Engorada uma galinha, logo se enternece, incapaz de matá-la. O
homem desmancha o galinheiro e, no lugar, ergue-se cacto feroz. Arranca a única
roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.
Após a feitura
de tal distinção, aparece o surgimento do objeto que causará o conflito
relacionado ao ciúme:
Até o dia em que, abrindo a porta, de volta
do passeio, acham a seus pés uma carta...
Posteriormente é
posta em voga a influência dos encantos da mulher para com seu marido após ela
lhe perguntar se o marido não iria queimar a carta:
O canto das sereias chega ao coração dos
velhos?
Este trecho de
certa forma nos permite enxergar a mesma influência creditada a Capitu com seus
olhos de ressaca, os quais de certa forma enfeitiçavam Bentinho, citação que
aparece em diversas vezes no texto de Trevisan ao enfocar os olhos azuis da
personagem feminina.
Após desprezar a
importância das cartas deixadas em seu portão, a personagem masculina abriu o
envelope e viu duas palavras recortadas, as quais não são reveladas para o
leitor.
Após tal atitude
o inicia-se a instalação do ciúme dentro da obra:
Acorda no meio da noite, salta da cama, vai
olhar à janela. Afasta a cortina, ali na sombra um vulto de homem.
Um ponto
importante dentro do enredo é que os envelopes são azuis, tal quais os olhos da
personagem feminina, o que causa uma ambigüidade em relação à cor: Range a porta lá está: azul.
A referência
direta a Penélope de Homero se dá no trecho:
...Recorda a legenda de Penélope, que desfaz
de noite, à luz do archote, as linhas acabadas no dia assim ganha tempo de seus
pretendentes. Cala-se no meio da história: ao marido ausente enganou Penélope?
A natureza viva
dos românticos torna-se amiga do esposo ciumento, para enfatizar sua certeza
neurótica, que vê razão em tudo para constatar sua percepção sobre a traição da
parceira:
Imagina um plano: guarda a carta e dentro
dela um fio de cabelo...
A construção e
crença em uma realidade subjetiva aparecem no parágrafo:
Desde a rua vigia os passos das mulher dentro de casa. Ela vai
encontra-lo no portão- no olho o reflexo da gravata do outro. Ah, erguer-lhe o
cabelo da nuca, se não tem sinais de dente... Na ausência dela, abre o guarda-
roupa, enterra a cabeça nos vestidos. Atrás da cortina espiona os tipos que
cruzam a calçada. Conhece o leiteiro e o padeiro, moços, de sorrisos falsos.
A aproximação
com o protagonista de Graciliano Ramos, além do trecho citado acima, pode ser
constatada, na decisão em comprar uma arma de fogo:
Afinal compra um revólver.
-Oh, meu Deus para quê?- espanta-se a
companheira.
A tormenta de se
preencher o posto de objeto de ciúme faz com que a personagem feminina
aproxime-se de Madalena de Graciliano, cometendo suicídio com a arma adquirida
pelo companheiro:
A velha na cama, revólver na mão, vestido
branco ensanguentado.
Dentro da
construção da narrativa a cor do vestido, pode propiciar ao leitor uma pista,
pois em várias culturas o branco representa pureza, o que pode ser um fato para
apontar dentro da obra a inocência da esposa.
Ao contrário de
Paulo Honório, a personagem masculina, não assume a culpa pelo ocorrido, apenas
restringe-se a colocar em dúvida se teria ou não a mulher cometido o adultério:
A mulher pagou pelo crime. Ou – de repente o
alarido no peito – acaso inocente?
Após tal
indagação o então viúvo aponta sua fixação para o suposto amante da falecida
esposa, o qual dentre os possíveis ela já havia apontado para um primo da
esposa, morto aos 11 anos de tifo e chega a apontar como tal uma pocinha de
água no fundo da cova, elevando sua neurose ao máximo.
Em sua
finalização o texto aponta para um possível estado de loucura da personagem masculina,
já que este sai de casa para o passeio de sábado, o qual costumava fazer em
companhia de sua esposa, com o braço na posição como costumava dar a ela.
No último
parágrafo aparece um possível momento de lucidez, no qual ele demonstra certo remorso ao repetir a sentença – fui justo, por duas vezes, ao retornar
para casa, questionando sua até então certeza.
No final
retrata-se o estado de culpa da personagem, que tenta por meio da leitura em
voz alta espantar o silêncio que lhe atormenta, por lhe propiciar o encontro
consigo em estado pleno de solidão, o qual o obriga a refletir sobre o ocorrido
de maneira racional:
Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se
na poltrona, lê o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.
A ausência dos
nomes das personagens configura de certa forma a presença de personagens tipo
dentro da obra, imprimindo ao texto uma significação ampla, e esta permite aos
leitores, uma reflexão mais profunda sobre o tema, fazendo-os pensar sobre o
quão contrário ao amor pode ser sentimento de ciúme, já que este por meio tanto
deste conto quanto do romance São
Bernardo, mostra-se como um ter que mata aos leais.
REFERÊNCIAS
MACHADO, Assis, Dom Casmurro, São Paulo, Globo: 1997.
MOISÉS, Massud, A Literatura portuguesa através dos textos,
Cultrix: 1988.
TREVISAN, Dalton, Vozes do retrato, São Paulo, Ática: 1997.
PLATÃO, Banquete, São Paulo, Martin Claret: 2007
1 Comentário
Ótimo meio ensaio, meio artigo rsrsrs...
Excelente observação do vestido branco em que o autor, supostamente, nos transmite a ideia de pureza, mas terminar ensanguentado não seria outra suposta ideia de ruptura dessa pureza???
Abraços Fernando!
Joice Cheles
Postar um comentário