Meu
amigo partiu. Diogo tinha adquirido o seu celular dual chip fazia duas semanas.
Foi um acidente de percurso. Deu com a cabeça numa quina frágil do meio-fio.
Pedra recoberta de liquens, até o concreto da cidade apreende a vida, ao seu tempo.
Por engano ligou para o seu número, de um chip para outro, o celular explodiu.
Assim ficou registrado na causa mortis. O impacto da cabeça contra a rigidez da
via, esbagaçando em vermelho os seus miolos. Ao final do mês as contas de ambas
as operadoras atestavam a ligação derradeira – contra si mesmo.
É
triste saber das ideias que se encontravam antes aninhadas num mesmo fardo
esparramarem-se amorfas. Dizem ser esta a matéria-prima que move as funerárias,
os papa-defuntos, os traficantes de órgãos e os coveiros. Bom para eles.
Sentirei falta de meu amigo Diogo.
Agora
o resto é objeto de disputa entre anjos e demônios. Não é certo que tenha um ou
outro direito sobre a sua alma por completo. Este é o senso comum, mas quanto a
isso não existem provas irrefutáveis ou mesmo evidências científicas. E não sei
de ninguém que tenha retornado do purgatório com respostas.
É
consenso que Diogo não era bom nem mau e habitavam-lhe certas incongruências de
caráter, como acontece com a toda a gente.
Penso
se a questão não seria digna da instauração de uma CPI, mas rapidamente refuto
a hipótese: Diogo era de natureza simples, ignara, praticamente um matuto
transmudado à cidade.
Ele
foi engolido pela terra. A travessa e o calçamento varridos pelas chuvas.
Noutro dia o sol irrompeu o firmamento. E na manhã seguinte também.
Guardo
comigo minhas cismas e achismos.
Resignado,
aguardo minha vez.
*
* *
Caminho a margem de extenso muro, os
tijolos expostos como células, colados na velha argamassa de cimento, recoberta
de liquens, até ao concreto o tempo dá vida. Escura e úmida a bruma, seguem os
mistérios junto a mim. A segurança de poucos passos, em desafio a pretensa
razão, são sendas desse destino vacilante, circunscrito ao brilho de uma tênue
lamparina, ermo ao vagar. As rajadas de vento figuram tormentas de meter medo e
as sombras na parede aludem às bizarras criaturas; porém estas não passam de
fantasmas a habitar minha mente. Nada disso me abate ou desanima por inteiro,
meu São Jorge me proteja, enquanto o muro está à margem, dos labirintos dessa
vida, o fio da meada, ou a porta de saída, eu ainda acho um dia.
3 comentários
Muito bom, Jorge!! Adorei!
Super-Grato, Mariela!!
“até ao concreto o tempo dá vida”
Jorge, mais um belo texto construído com a argamassa competente de tua escrita!
Parabéns!
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